Cultura alternativa

Teatro negro

Grupo francano Corpo Negro denuncia o racismo apontando a falta de representatividade e de visibilidade nos palcos e na plateia

Gabriela Sturaro

Talita Souza

Foto acima: Integrantes do grupo na apresentação do espetáculo adulto “Um cisco no peito” (Divulgação/Corpo Negro)

Foi em 2016 que Josiana Martins, Kauane Ketholin, Gabriel Saqueto e Rodrigo Raphael, estudantes do curso técnico de Teatro do Serviço Nacional do Comércio (Senac) de Franca e fundadores do Grupo Corpo Negro, começaram a perceber a ausência de negros, seja representando ou assistindo.

Josiana conta que assistiam a uma peça no Teatro SESI, sobre cultura africana. Havia apenas uma atriz negra em cena e poucas pessoas negras nas cadeiras. “Umas cinco. Nós nos incomodamos e começamos a debater”.

Essa é uma das histórias que você confere nesta quarta e última reportagem da série “Bocas gritando contra a crueldade”, sobre a cultura negra em Franca (clique e veja a primeira, a segunda e a terceira).

Questionando por que os artistas negros não tinham tanta visibilidade em Franca, os estudantes se lembraram de Rogério Miranda, que, de acordo com Josiana, era uma referência para eles. Decidiram conversar com o ator, que aceitou se reunir, com frequência, para debater temas do cotidiano dos negros na cidade. “Foi a primeira vez que nos perguntamos ‘quem são os artistas negros de Franca?’. Foi isso que deu início ao encontro com o Rogério.”

No último ano do curso, em 2017, os quatro fundadores do grupo fizeram a primeira apresentação juntos. Uma montagem em homenagem a Marcelino Freire, autor do livro “Contos Negreiros”. A ideia surgiu de uma conversa com uma professora de teatro, Nathália Fernandes. A peça foi exibida primeiro no Senac, de onde se expandiu para outros lugares.

Além de Rogério Miranda, seriam convidadas as atrizes Anny Ribeiro e Gabriela Sampaio, além de Nathália, como diretora, e de Ana Paula Bartos, a Anazú, como produtora. Com a saída de Gabriel, ficaram oito integrantes. Atualmente, o grupo trabalha em dois espetáculos: um adulto, “Um cisco no peito”, e um infantil, “O mundo começa na cabeça”.

O primeiro é uma ampliação do projeto desenvolvido no Senac. Mistura cenas a partir do livro de Freire com criações de outros autores e dos próprios membros do Corpo Negro. Segue o link para o teaser:

 

Já o outro é inspirado em histórias de crianças negras, algumas das quais vividas pelos atores. Devido à pandemia de Covid-19, as apresentações estão suspensas e sem previsão de volta. Confira o teaser a seguir: 

 

Abdias do Nascimento

Em 1944, o francano Abdias do Nascimento, então com 30 anos, fundou, no Rio de Janeiro, o Teatro Experimental do Negro (TEN), junto com Aguinaldo Oliveira de Camargo, Wilson Tibério, Sebastião Rodrigues Alves, Arinda Serafim e Ilena Teixeira. A proposta era valorizar o povo negro e a cultura afro-brasileira.

A primeira peça apresentada, apenas com atores negros, foi ‘O Imperador Jones’, que Abdias havia assistido em uma passagem pelo Peru, antes de fundar o TEN. Na ocasião, ficou inconformado de ver personagens negros sendo interpretados por atores brancos com a pele pintada. Seria o estopim para a criação do TEN.

No artigo “Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões”, escrito em 2004, Abdias afirmou que o negro era rejeitado não só como personagem e intérprete, mas de “sua vida própria, com peripécias específicas no campo sociocultural e religioso, como temática da nossa literatura dramática”. Por isso, a importância do TEN.

Abdias do Nascimento fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN), após peça no Peru (Foto: Banco de imagens)

Além do grupo, ele fundaria o Comitê Democrático Afro-brasileiro, em 1945, com sede na União Nacional dos Estudantes (UNE), para lutar pela anistia de presos políticos e ajudar a restabelecer a democracia no Brasil. No mesmo ano, o TEN e o comitê, juntos, realizaram, no Rio de Janeiro e em São Paulo, a Convenção Nacional do Negro Brasileiro, sob a liderança de Abdias – que é uma das maiores influências do Grupo Corpo Negro.

Para a atriz Gabriela Sampaio, também educadora social e integrante do Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra (COMDECON), ele, que morreu em maio de 2011, aos 97 anos, é respeitado não apenas por ter fundado o TEN, mas pela origem francana.

“O grupo tem várias inspirações, mas o nome que fazemos questão de falar é Abdias do Nascimento. Não apenas pelo legado, mas por ser um francano pouco lembrado na cidade, além de fundador do Teatro Experimental do Negro. Sem o TEN, acho que seria muito difícil a gente dar continuidade e saber dessa importância que carregamos. Abdias é um nome reconhecido mundialmente e que não trabalhou só com o teatro.”

Por isso, o Corpo Negro, segundo a atriz, não é apenas um grupo teatral, mas político e de pesquisa. “Admiramos Abdias em suas várias facetas, como dramaturgo, pintor, ativista… Uma figura muito importante pra gente.”

Escassez de fontes

Por ter características de pesquisa, a montagem dos espetáculos do Corpo Negro envolve muitos estudos. Antes dos ensaios, os integrantes definem o recorte de um tema e, a partir daí, são consultados vários autores, principalmente do teatro brasileiro e, de forma mais específica, do teatro negro no país. “A junção das pessoas do grupo tem, a princípio, esse desejo pela pesquisa, por entender qual é o lugar do negro, do corpo negro no teatro brasileiro. E, no caso do teatro negro, ele acontece, em sua grande maioria, a partir da pesquisa que é feita por recortes”, afirma Rogério Miranda.

Devido ao pequeno número de dramaturgos negros no Brasil, o grupo acaba tendo que recorrer a outras fontes, como poetas e músicos negros. Rogério explica que, por causa da escassez de autores, há uma diferença do teatro negro para o teatro em si. “A quantidade de textos produzidos por negros é menor e, geralmente, estão nos próprios grupos. Existem poucos que escrevem para outros grupos ou, exclusivamente, para publicação. Por isso, os textos não vêm inteiros nem prontos, como uma obra de Shakespeare.”

Com isso, cada grupo produz sua própria dramaturgia. Recolhe um material aqui, outro lá e vai compondo o que será dito em cena. “Depois, esse grupo escolhe como o texto será dito e, junto com isso, o que será dito sem texto. O resultado disso é uma dramaturgia de recortes”, explica Rogério.

Para Josiana, a falta de materiais também se deve à invisibilidade do povo negro, que dificulta o lugar de fala. “O que encontramos, geralmente, não é bem o que gostaríamos de dizer. E, se não tem, criamos. Esse é um movimento também de autoria. A partir dos recortes, também compomos, fazemos música. Depende do trabalho e da proposta. Hoje, por exemplo, temos um espetáculo adulto e um infantil, e ambos são baseados em fontes diferentes.”

Para Rodrigo Raphael, um dos aspectos mais importantes da pesquisa é a possibilidade de tirar dela situações que se encaixem com a vivência dos atores, o que, na visão dele, traz mais “verdade” na hora de atuar. “Tanto na peça infantil quanto na adulta, voltamos lá atrás e tentamos lembrar coisas que já passamos. Um trabalho de pesquisa mesmo, de nos olhar e nos enxergar diante daquela obra que estamos montando.”

Integrantes do grupo “Corpo Negro”. Ao fundo (esq. para dir.): Gabriel Saqueto, Rodrigo Raphael, Rogério Miranda e Anny Ribeiro. Na frente, (esq. para dir.): Gabriela Sampaio, Kauany Neris e Josiana Martins. Espetáculo infanto-juvenil “O mundo começa na cabeça” (Foto: Divulgação/Corpo Negro)