“Tem que ser de luta”
Na 2ª reportagem da série “Bocas gritando contra a crueldade”, você confere como o Movimento Negro trabalha pela igualdade racial
Gabriela Sturaro
Talita Souza
Foto acima: Carlos Eduardo da Silva, presidente do COMDECON, na sessão da câmara em 2019 em homenagem às personalidades negras do ano (Divulgação/COMDECON)
“A luta dos negros é uma questão da humanidade. O branco tem um papel muito importante de entender essa luta. E também não basta ser negro, tem que ser de luta. Tem que criar ações beneficentes para a comunidade”.
A percepção é de Carlos Eduardo da Silva, conhecido como Du, presidente do Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Franca (COMDECON), e expressa uma busca por respeito. Uma história que começou a ser escrita há mais de 200 anos, desde quando foram registradas as primeiras presenças de escravos africanos por essas terras, mas que só foi materializada em forma de movimento há quatro décadas. É o que você vai conferir nesta segunda reportagem da série “Bocas gritando contra a crueldade”, sobre a cultura negra na cidade (clique aqui para ler a primeira, sobre o poeta Carlos de Assumpção).
No início dos anos 1980, foi fundado o Movimento Negro Unificado de Franca, o Monuf, que seria a base para que, em 2003, surgisse o COMDECON. Du afirma que o Monuf discutia melhorias para a cidade. No espaço Luís Gama, referência para a comunidade negra, os participantes se reuniam para debater políticas públicas.
Segundo Du, o grupo era bem organizado e, aos poucos, houve a necessidade de ampliar as ações. Em 23 de agosto de 2003, pela Lei Municipal 6.009, assinada pelo prefeito da época, Gilmar Dominici, o Monuf foi transformado em COMDECON – que foi, aos poucos, passando por mudanças. “Muitos [dos membros] se tornaram políticos e não cumpriram o que foi decidido.”
Ele explica que o Movimento Negro francano “se refere aos grupos que se organizam pela cidade, sendo eles coletivo de feiras, samba, congadas, saraus, mulheres negras, entre outros”. Eles têm um objetivo comum: a luta contra o racismo e pela igualdade social. Para isso, buscam conquistar e ampliar espaços para que as comunidades negras tenham visibilidade.
A vida dele sempre foi morar na periferia, onde desenvolve trabalhos com a cultura hip hop, que conheceu em 1993. “Desde aquela época, nunca parei, focado na luta pelos direitos humanos e pelo povo preto”. Em 2009, participou da criação do coletivo Angá. “A gente costuma dizer que, antigamente, era quilombo. Hoje, é periferia, que é negra por criação.”
Du se aproximou do conselho em 2009. “Comecei a apoiá-lo, mesmo não sendo conselheiro. Participava das reuniões e ações. De 2016 a 2019, me tornei presidente na primeira gestão. Depois, me reelegi.”
O COMDECON elabora políticas públicas para a valorização das comunidades negras, discute com a prefeitura as possibilidades de implementação e tem, também, a missão de fiscalizar, fazendo a conexão entre o Movimento Negro e o poder público. Intervém, até, em questões policiais.
O presidente relata, por exemplo, que “uma mulher negra foi atendida na delegacia para fazer boletim de ocorrência por conta do racismo que sofreu. E o delegado disse para ela não fazer, para deixar para lá. O conselho atua na mudança disso”. Entre seus membros, quatro são advogados, justamente para buscar soluções jurídicas quando não há consenso. “Foi preciso pegar a lei de crime de racismo e mostrar para o delegado, que ele tinha que registrar o caso”, conta Du.
Muitas foram as conquistas devido às lutas do conselho. Uma delas foi a reserva de cotas raciais nas instituições de ensino superior de Franca. Nas escolas municipais, houve a formação de professores voltada ao ensino da cultura afro-brasileira e africana, obrigatório pela Lei Federal 10.639, de 2003.
“O negro é invisibilizado na cidade. Os veículos de comunicação dão voz a quem eles querem. Seria importante contarem as histórias do povo negro, para que não fossem esquecidas. Por Franca, passaram algumas personalidades negras, como Joana D’Arc Félix de Souza, Carolina Maria de Jesus, Abdias do Nascimento (que será apresentado na quarta reportagem desta série), Carlos de Assumpção, entre outras. E pouco se lembram delas”, afirma Du.
Consciência Negra
Ele declara que muitas pessoas querem apagar a trajetória do negro em Franca e aquilo que conquistaram, como o feriado da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro. A data, nacional, lembra a morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, que teve papel fundamental na mobilização dos escravos no Brasil e que foi morto neste dia em 1695. Mas, como não é obrigatória, fica a cargo de cada localidade respeitá-la ou não. Dos 5.570 brasileiros, 832 cidades brasileiras comemoram.
Agora em 2020, um grupo de pessoas, com apoio da Associação do Comércio e Indústria de Franca (ACIF), tentou mudar o feriado, mas o pedido foi negado pela Justiça. Conforme a assessora da associação, Tarissa Esteves, “o pedido foi para fosse transferido, excepcionalmente este ano, para o dia 22 de novembro.”
Por meio de nota, a ACIF esclareceu que a reinvindicação para alteração nas datas dos feriados municipais pela Consciência Negra e Aniversário de Franca, ocorrido via ofício enviado à Câmara Municipal no dia 2 de setembro, teve o objetivo de amparar as atividades empresariais de Franca em razão dos efeitos da pandemia na economia local.”
Afirmou, ainda, que a entidade não tem nada contra a causa da comunidade negra, e que esta é legítima e necessária. “Por mais melhorias e mudanças tenham acontecido, a falta de oportunidades para a população negra é flagrante, tal como exposto pelo Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Franca, e a data promove a quebra de paradigma por meio da reflexão e provocação popular. Gostaríamos de esclarecer que o pedido nunca foi pelo cancelamento da data.”
Na nota, também consta que o pedido de transferência foi em decorrência de estudos do Instituto de Economia ACIF, que concluiu que Franca perdeu R$ 610 milhões só no primeiro semestre e que as projeções dão conta do fechamento de 15 mil vagas de emprego até dezembro, caso não haja esforços para socorrer a economia local.
O radialista Marcelo Valim, francano responsável pelo projeto que instaurou o feriado, aprovado em 2006 na câmara, era o único vereador negro naquele ano. “Fiquei dois mandatos. No segundo, teve o Vanderlei Tristão, que também era negro. Depois, em 2016, entrei no lugar de Jépy Pereira, que faleceu, e fiquei um ano na suplência. Fui perseguido e sou até hoje, pelos empresários que não gostam do feriado da Consciência Negra. Não aceitam de jeito nenhum”, afirma. “Tanto que não é muito respeitado. As pessoas ainda trabalham, mas, como é feriado, os funcionários ganham dobrado.”
Valim diz que se preocupa com a retirada do feriado na próxima gestão da câmara. Como está no rádio há anos, diz que consegue chamar a atenção da população negra, para que fique atenta às mudanças. “Queria ter entrado como vereador nesta última eleição. Mas fiquei como suplente. Os que entraram agora são todos brancos. Tenho medo de tirarem o projeto. Enquanto estou na rádio, vou segurando. Mas, quando sair, pode ser que mudem isso.”
Para guardar a data, a Câmara organiza uma cerimônia para homenagear 20 pessoas negras a cada ano. Depois de receberem uma placa, elas participam de uma confraternização. Mas Valim faz um desabafo. “O feriado é pouco pelo que nossos antepassados sofreram. Pessoas foram tiradas de seus lares, mulheres foram violentadas, chicoteadas, e muitos foram escravizados e mortos.”
Escravos em Franca
Para Du, presidente do COMDECON, o dia 20 de novembro é uma ocasião para lembrar a presença de escravos em Franca. “É uma cidade histórica do interior. Teve muitas fazendas e o forte era o café. Mas foi uma região muito triste por causa do sistema escravocrata, com as senzalas. É importante lembrar esse período.”
De acordo com Maísa Faleiros da Cunha, pesquisadora do Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (NEPO), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a escravidão africana foi comum em Franca entre os anos 1801 – 1888. No início do século, a cidade, que levava o nome de ‘Vila Franca do Imperador’, tinha um povoamento esparso e escasso, fator que motivou a chegada de muitos africanos e crioulos, acompanhados de seus proprietários. Os crioulos, segundo ela, eram os escravos descendentes de africanos, mas nascidos no Brasil. “Todos os que foram para Franca eram de Minas Gerais.”
Os donos de escravos mineiros escolheram Franca porque, além de ser pouco povoada, tinha terras férteis e rios, propícia à criação de gado e à produção agrícola. Eles ainda poderiam levar os animais para serem vendidos em Minas.
Boa parte dos escravos comercializados na região Sudeste do Brasil chegava pelo porto do Rio de Janeiro. Era necessário, então, que os comerciantes mineiros se dirigissem à capital do império. O valor de cada escravo, que seria levado depois para fazendas no interior do país, variava de acordo com a idade, sexo e qualificação profissional – alguns eram sapateiros, ferreiros, carreiros, o que era um diferencial. Se fosse homem, jovem, sem problemas físicos, era mais valorizado.
Segundo Maísa, 40% dos domicílios em Franca tinham escravos no ano de 1836. E mais da metade das pessoas que tiveram seus bens inventariados entre 1811 e 1888 tinham um ou mais escravos. A oferta de mão de obra escrava era relativamente abundante até 1850, ano em que houve a proibição do tráfico transatlântico de africanos.
A pesquisadora afirma que é possível comprovar a presença de escravos em Franca por meio de documentos históricos, como registros paroquiais de batismo, casamento e óbito; inventários post mortem (onde os bens eram arrolados); testamentos; escrituras de compra e venda de escravos; cartas de liberdade; processos-crime (em que escravos eram vítimas, testemunhas ou autores); listas nominativas de população e matrícula de escravos (havia leis do Império obrigando os senhores a registrarem seus cativos, não se tratando de matrícula escolar).
A matrícula de escravo foi um documento obrigatório a partir da Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, que consistia na libertação dos filhos que nascessem a partir daquela data. O proprietário que não a fizesse perderia a posse do escravo. Ao adquiri-lo, o proprietário tinha que fazer a matrícula imediatamente, dirigindo-se à coletoria do município.
Os escravos trabalhavam em várias atividades, como cultivo de alimentos (arroz, milho, feijão e outros), produção de cachaça, queijo, tecidos de algodão e na pecuária. Também atuavam em serviços que exigiam algum grau de especialização, caso dos sapateiros e ferreiros, e atividades domésticas – cozinheiras, lavadeiras e engomadeiras.
Apesar de alguns registros terem sido preservados, eles são poucos. Maísa diz que a trajetória dos escravos foi levada ao esquecimento porque essa população era “majoritariamente analfabeta”, além do que há desinteresse dos historiadores em abordar o tema.
A historiadora conclui dizendo que, “até os anos 1980, não se acreditava na existência da família escrava, por conta da violência da escravidão e porque havia um maior número de homens”. Mas isso foi sendo desmistificado pelos estudos que consultaram as fontes primárias, como os registros paroquiais, os inventários e as listas nominativas, em que constam casamentos entre os escravos e batizados de seus filhos.