Nas entrelinhas do jogo
Desde pequeno, o francano Thiago de Melo tinha certeza de que queria viver para o futebol. E não estava enganado
Lucas Faleiros
Foto acima: Treinos do Novorizontino são filmados com o uso de drone (Divulgação)
Mesmo para os mais fanáticos e assíduos fãs do esporte, entender tudo o se passa dentro de um campo de futebol não é uma tarefa simples. O jogo é muito mais do que 11 atletas correndo atrás de uma bola e tentando acertar o gol adversário. Existem diversos fatores táticos, técnicos, individuais e coletivos que compõem a compreensão desse desporto.
Thiago de Melo, de 26 anos, pôs em sua cabeça que faria do futebol a sua vida. E assim o fez. O francano, que passou toda a sua infância com a bola colada nos pés, brincando com amigos nas ruas do Parque Vicente Leporace ou correndo rente às linhas laterais de campos espalhados pela cidade, trabalha, hoje, em um dos clubes mais bem-sucedidos do interior paulista, o Grêmio Novorizontino. A função dele lá? Justamente a citada anteriormente: entender e contextualizar o que está acontecendo em partidas de futebol.
Mas, antes de alcançar o objetivo de fazer do esporte o seu cotidiano, Thiago teria de lutar bastante. Mais do que isso: ele precisaria demonstrar interesse e persistir batalhando por sua tão sonhada meta.
O hoje analista de desempenho da equipe de Novo Horizonte tinha, ainda pequeno, um sonho que é comum entre muitos jovens garotos brasileiros. Morando com sua mãe e seus dois irmãos, almejava ser jogador. “Eu sempre gostei, né? A minha infância foi bater bola na rua, arrancar a ‘tampa’ do dedo”, afirma, dando risadas. “Eu era lateral-direito. Joguei na base da Francana e passei por outras escolinhas de Franca.”
Naquela época, o então garoto já gostava de ver o jogo com um olhar diferente – indício de que poderia atuar na área em que está agora. Para ele, o futebol era mais do que passar a bola e fazer o gol ou defender o seu campo da presença dos jogadores rivais. Distante de ser elementar. Entretanto, foi na universidade que ele tomou a decisão de se dedicar especialmente à modalidade.
“Sempre curti observar o esporte com um olhar tático, mais técnico. Isso me inspirou a cursar Educação Física. Só que, em Franca, o futebol não tem tanta ênfase na faculdade. A pegada é muito básica. Por isso, acabei procurando aprender mais fora, quando me formei, em 2018”, lembra.
Em busca do sonho
A partir da formatura, Thiago passou a conciliar seu trabalho, no setor de logística de uma empresa calçadista, com inúmeros cursos sobre análises futebolísticas. Foi em meio a essas aulas que decidiu em qual área atuaria. “Ao todo, foram mais de 15 cursos. Cursei na CBF, na Universidade do Futebol, com o analista da Seleção Brasileira Feminina, o Ricardo Pombo, e, no meio disso tudo, conheci a análise de desempenho, que é onde estou hoje”.
O convite para trabalhar no Novorizontino, porém, não viria de forma tão rápida. Para colocar em prática aquilo que aprendia, ele fazia trabalhos voluntários para o clube Rose’n Boys. Foi aí que ele conheceu uma figura determinante para seu futuro. “Eu me propus a fazer esse trabalho de análise de desempenho para que pudesse ter um material. Fui fazendo isso e montando um portfólio. Após um tempo, conheci o coordenador do setor de análise do Grêmio Novorizontino, que é o Vinícius Valle.”
Thiago começou fazer análises das partidas do clube do interior paulista e pedir dicas para o analista, que o indicava em quais aspectos poderia melhorar. O aprendiz levou a vida assim até janeiro deste ano, quando decidiu deixar seu emprego e se dedicar integralmente ao futebol. “Eu já não estava feliz profissionalmente e não tinha tempo para estudar e produzir meus materiais. Queria ‘meter a cara’. Foi o que eu fiz.”
Enquanto continuava gerando portfólio, seguia fazendo seus cursos. Para se sustentar, passou a fazer entregas de moto. Com o dinheiro do trabalho, pagava seus materiais de estudo e lidava com as despesas. No final das contas, o esforço e o trabalho valeriam um golaço. O Monte Azul, clube de Monte Azul Paulista, o convidou para conhecer suas instalações, mas essa nem seria a melhor parte.
“Coincidentemente, quando fui para Monte Azul Paulista o Vinícius Valle me ligou e disse ‘ó, vai surgir uma oportunidade aqui no Novorizontino. Me manda todo o seu material de novo e seu currículo. Se você quiser, marcamos uma entrevista online’. Isso foi em uma quarta-feira. Na sexta-feira, fui para Novo Horizonte e a gente se alinhou. Deu certo! Pouco tempo depois de sair do meu antigo emprego, consegui a chance de trabalhar com aquilo que gosto.”
Mundo novo
Já morando e completamente instalado em Novo Horizonte, Thiago não deixou para trás o seu “lado aluno”. Convivendo com profissionais como Léo Condé, treinador da equipe, e o próprio Vinícius, analista e seu recrutador, ele tem adquirido muito conhecimento sobre futebol. Isso não significa, todavia, que tenha viajado mais de 200km somente para aprender. Ele também contribui para o desenvolvimento dos atletas e do estilo de jogo do coletivo, por meio de suas análises.
“No meio de semana, meu trabalho é analisar o que acontece nos treinos. Os jogadores treinam hoje e a gente analisa amanhã, passando para o treinador tudo que não está acontecendo da maneira correta em campo. Quando tem jogo no sábado, por exemplo, analiso toda a partida no domingo e, na segunda-feira, passamos todos os pontos-chave para o Condé”, explica, sobre a rotina.
O analista de desempenho conta que trabalhar em um clube que tem a estrutura do Novorizontino é encantador e até facilita as coisas. “Para mim, estar aqui é muito diferenciado. Os companheiros afirmam que tem time de série A do Campeonato Brasileiro que não tem a estrutura que temos aqui. Nós filmamos os treinamentos com drone, observamos o posicionamento dos jogadores com GPS… Tem tudo o que você pensar sobre o ramo de análise”.
Futebol analítico na prática
Apesar de ainda existirem pensamentos contrários a essa filosofia, as táticas e avaliações individuais e coletivas fizeram o futebol evoluir de forma evidente. No interior, o time onde Thiago trabalha é um dos que mais investem na área de “inteligência futebolística”. Para ele, funciona.
“Dá muito resultado! Não é querendo puxar sardinha para o nosso lado, não. O treinador tem seu trabalho e exerce muito bem, mas ele, lá dentro do campo, não consegue ver tudo o que a gente vê. Ele não vai conseguir guardar tudo o que aconteceu na partida. É aí que entra o trabalho do analista. O futebol é muito complexo. Muitas cabeças pensando juntas funciona melhor. Tanto que algumas vezes os próprios jogadores também nos procuram. É algo coletivo”, afirma.
Ele aproveita para citar um exemplo de quando o trabalho de análises do clube entrou em ação. No confronto entre Novorizontino e São Paulo, que aconteceu em março, pelo Campeonato Paulista, e acabou sendo vencido por 2×1 pelo Tigre, um jogador em especial do Tricolor vinha dando bastante trabalho e precisava ser neutralizado.
“Nós percebemos que o Daniel Alves estava descendo muito pelo meio do campo. O São Paulo fazia uma pressão com superioridade naquele setor e a nossa marcação não encaixava. Então, avisamos ao Renatinho, auxiliar técnico do Léo Condé: ‘O Dani está flutuando muito pelo meio e é preciso trazer um ponta para o setor defensivo, fechando a linha de passe dele, que é o cara diferente’. A partir disso, o Daniel ficou menos efetivo e acabamos vencendo.”
O francano diz que ver o time se dando bem nos campeonatos e sentir que isso tem a ver com seu trabalho não tem preço. “É gratificante demais você ver que está ajudando a equipe e os atletas a evoluírem. Você se sente útil. Futebol é muito dinâmico e nem sempre tudo sai como esperamos. Por exemplo, nós não nos classificamos para a fase de mata-mata do último Campeonato Paulista. Mas olha como são as coisas de Deus: disputamos o Troféu do Interior, fomos campeões para cima da Ponte Preta e ganhamos a vaga na próxima Copa do Brasil.”
O futuro
Perguntado se sonha um dia se tornar treinador, Thiago diz não saber ao certo. Só que de uma coisa ele tem certeza: quer continuar vivendo nas entrelinhas do futebol. “Quem sabe no futuro, né, cara? Eu pretendo ainda fazer uma pós-graduação na Universidade Federal de Viçosa, que é uma das melhores quando o assunto é futebol. Penso em continuar no ramo da análise tática e me estabelecer. Aprender cada vez mais.”
O analista aproveita para revelar um outro sonho. Esse, dizendo respeito à sua cidade natal. “Eu quero, um dia, levar um grupo de estudos para Franca. Pretendo ajudar a alavancar a aprendizagem e os treinamentos de futebol na cidade, dando uma força também para a garotada que sonha estar nesse meio.”