Cidades sustentáveis

Quem são as vítimas?

De 2015 a outubro de 2020, 261 pessoas morreram no trânsito francano, 113 em motos; acidentes envolvem mais homens 

Kaique Castro

Foto acima: Faixa etária mais vulnerável nos acidentes com moto está entre 18 e 29 anos em Franca (Banco de imagens)

“Não sei o que vai ser da minha vida agora sem ele. Perdi meu porto seguro, meu tudo. Até nossos cachorros sentem a falta dele. Desde o dia do acidente, quando chega à noite, não consigo dormir. Inclusive o nosso labrador começa a chorar sem parar. O momento em que ele chegava em casa era o nosso momento com ele.”

Esse é apenas um das centenas de relatos de quem perdeu alguém no trânsito de Franca. A cidade tem um dos trânsitos mais fatais em todo o Estado de São Paulo, segundo a Polícia Militar e o Infosiga (Sistema de Informações Gerenciais de Acidentes de Trânsito do Estado de São Paulo).

Nesta terceira reportagem da série sobre o risco de dirigir em Franca (clique para ler a primeira e a segunda), os dados mostram que, entre janeiro de 2015 e outubro de 2020, 261 pessoas perderam suas vidas nas ruas e avenidas da cidade. Destas, 113 estavam em motos. Outro dado que chama a atenção é o perfil das vítimas: em 78,2% dos acidentes, os envolvidos eram homens. A faixa etária mais vulnerável, segundo o Infosiga, está entre 18 e 29 anos.

“O homem tem o costume de ter um descuido maior no trânsito. Dirigindo em velocidade acima do permitido, ultrapassam de forma irregular e não praticam os conceitos de direção defensiva”, explica o Tenente da Polícia Militar Régis Mendes, responsável pelo Pelotão de Trânsito de Franca.

Só nos primeiros dez meses de 2020, foram 38 mortes no trânsito, 29 em motocicletas – duas a mais que em todo o ano de 2019. Para o tenente, uma das explicações é o alto número desse tipo de veículo, principalmente com entregadores de comida. Ainda segundo ele, o fato de muitas pessoas terem perdido o emprego devido à pandemia fez com que houvesse uma migração para o ramo das entregas.

“A Polícia Militar procurou os representantes dos aplicativos. Segundo alguns deles, o número de entregadores em Franca dobrou em 2020. E o que acontece é que muitos desses novos entregadores não têm uma experiência de trabalhar com a moto o dia todo. Andava com a moto para ir ao trabalho ou por hobby. Então, infelizmente, esse é um dos fatores para o aumento de mortes com motociclistas”, afirma o tenente.

Uma das vítimas foi o entregador Bruno Natanael dos Santos, que morreu no dia 16 de novembro, após ficar 25 dias internado em estado grave depois de sofrer um acidente de moto. O acidente foi registrado por câmeras de segurança. Nas imagens, é possível vê-lo entrar na rua Frei Germano, no bairro Estação. Após percorrer alguns metros, ele não enxerga, por motivos desconhecidos, a sinalização de um caminhão que prestava serviço para a CPFL e bate com violência na traseira do veículo. Era uma quinta-feira, 22 de outubro.

Imagem mostra Bruno passando por sinalização (Foto: câmeras de segurança)

Sem entender

Para a viúva, Kátia Mota, de 35 anos, que também trabalha nas ruas, como motorista de van, é difícil entender o que aconteceu. “Ele não tinha o costume de usar GPS e nem mexer no celular durante a entrega. Somente ele poderia responder o que aconteceu. Realmente não sei o que houve naqueles segundos. Vai ficar a pergunta para todo mundo: o que aconteceu para ele não ver a sinalização? Porque nas imagens dá para ver que ele não pega o celular e está olhando para frente”, desabafa a esposa, que estava com Bruno já seis anos.

Durante os dias em que ficou hospitalizado, o entregador chegou a estar consciente e conversar com familiares por cerca de uma semana. Mas, devido a um ferimento na perna, precisou fazer uma cirurgia e voltou para o CTI (Centro de Terapia Intensiva), onde teve falência de múltiplos órgãos.

“Ele lutou pela vida por 25 dias no hospital. Chegou a conversar, ter uma grande melhora. Fiquei todos os dias com ele lá. Na semana em que ele ficou no quarto, a gente conversava. A voz dele estava baixinha. Mas, tirando a dor na perna, estava bem. Brincava comigo, com as enfermeiras, conversava com os médicos”, conta Kátia.

Bruno sempre trabalhou com motos. Segundo familiares, era a maior paixão dele. Kátia o alertava dos perigos todos os dias. Ele chegou até a abrir uma empresa para poder ter segurança e direitos trabalhistas.

“Ele era uma pessoa muito, muito especial. Muito alegre. Éramos somente nós dois em casa. Mesmo tendo horários diferentes, a gente sempre estava junto, conversando pelo celular. Sempre tive medo do trabalho dele, por conta da moto, dos acidentes. Mas ele amava motos e nada tirava ele daquele serviço. Ele era um marido assim… [a voz embarga]. Não tenho nem como explicar. Ele procurava fazer tudo de bom e do melhor para mim. Era meu amigo, meu companheiro. Meu chão. A gente não se separava.”

Bruno não tinha filhos, mas já pensava no futuro com a esposa. Segundo ela, o casal estava com planos para comprar a tão sonhada casa própria.

Bruno planejava comprar a casa própria com a esposa (Foto: Acervo da família)

‘Cruel demais’

A cada ano, em todo Brasil, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o trânsito mata aproximadamente 40 mil pessoas. E três dias separam o caso de Bruno de um outro grave acidente de trânsito com motocicleta.

O entregador Weverton Felicio morreu na tarde de 25 de outubro. O acidente aconteceu em um domingo, em um cruzamento no Jardim Ângela Rosa, em Franca. Ele seguia pela rua Ângelo Melani, na altura do cruzamento com a rua Ângelo Scarabucci, quando foi atingido por outro veículo que trafegava em alta velocidade. Com o impacto, foi arremessado por vários metros e só parou ao atingir o muro de uma residência.

“Só escutamos o barulho. Foi muito grande. Saímos e vimos ele sem capacete, com a perna toda machucada. Ele até que tentou levantar, disse o nome dele, mas os ferimentos eram muito graves. Acionamos o Corpo de Bombeiros, que o socorreu. Depois, descobrimos que ele acabou não resistindo. É muito triste. Aqui, por exemplo, é um cruzamento muito perigoso. Sempre tem acidente”, afirma a aposentada Severina Rocha Soares, de 68 anos, que mora perto do local do acidente.

Weverton tinha 42 anos. Virou entregador após perder o emprego em uma loja de autopeças, por conta da pandemia de Covid-19. Segundo parentes, sempre teve paixão por motos e viu nas entregas uma forma de manter o sustento de sua família

“O trânsito é cruel demais. A cada dia, parece que as pessoas estão perdendo o amor pela vida. É preciso cuidado com o outro. Mesmo estando certo, sempre tem que duvidar, olhar para todo lado, ter mais calma, porque, de repente, pode ter alguém ali que você não está esperando”, conta Vera Felícia, tia da vítima.

Só após a morte, a prefeitura tomou medidas para diminuir acidentes naquele local. Cinco dias depois, foi instalada uma lombada para que os condutores diminuam a velocidade.

Acidentes graves

Em 35,71% dos acidentes com motos em Franca, as vítimas nem chegaram a ser socorridas. Morreram no local dos fatos.

“Um acidente de moto, em sua grande maioria, resulta no mínimo em lesões mais graves. É muito difícil você ver um acidente do qual o motociclista sai completamente ileso. Uma simples queda, que, falando a gente pensa em algo simples, traz graves consequências ao condutor e passageiro, podendo até ser letal” explica Régis Mendes.

Ainda segundo ele, os condutores de outros veículos também devem ter mais cuidado ao dirigir, já que muitas vezes as motocicletas entram em pontos cegos dos carros.

Weverton voltava de uma entrega quando o acidente aconteceu (Foto: Redes sociais)