Opinião e literatura

Apenas deixe ir

“Rapidamente, dou o clique e flagro o momento, acompanhando, com a câmera em mãos, o restante do corpo da vítima.”

 Lorena C. Castanheiro

Ilustrações: Banco de imagens

“Leia com música, porque músicas são sensações distintas que se completam”.

Quando seus pés tocam um degrau, deixam o anterior para trás, e assim sucessivamente, até que a passagem tenha desvanecido e sua visão sido tomada por algo novo. Mas a sensação com o último andar de um prédio é diferente. O pilar que sustenta todos aqueles andares é o caminho feito até ali, está lá, e pode ser visto sem ser deixado para trás.

Meus pés tocam o último dos degraus até o nono andar, pois não gostam de elevadores; e aquela, relativamente, não é uma construção muito alta.

É um edifício civil próximo a grande e monstruosa torre de Hancock Whitney Center, de cinquenta e um pisos. Lugar maravilhoso para tirar fotos.

Posiciono minha câmera e aguardo sorrateiramente até ter uma visão completa da rua. Ignoro completamente o pezinho de apoio e toda aquela aparelhagem de cameraman.

Nada daquilo é útil quando é preciso adotar uma posição ao chão, como a de um sniper. Apenas um clique e me moverei de localização novamente, como é exigido de um bom fotógrafo da polícia.

“Tomar as cenas do crime principalmente pelo ângulo de cima”.

Não se espera ganhar nada com isso além de algumas notas amarrotadas de cinquenta dólares e uma vida vaga e suja, como a de um indigente sem destino.

Meu telefone toca no bolso do jaleco esportivo, mas apenas vibra.

Seria mal se fizesse qualquer som alto e me anunciasse.

Uma mensagem nova: “Vítima 43 da manchete do jornal desta manhã”.

Mirar a tela fria do aparelho começa a me dar um pouco mais de entusiasmo. Finalmente, tenho algo para capturar! Hábil, procuro pelas horas. São 11h15 e não passou muito tempo desde o anúncio do crime.

“Tenho pouco tempo para me preparar”, falo com a câmera.

O vento forte bagunça meu cabelo. Está gélido na nuca, exatamente como o hálito de um inimigo em potencial. As sirenes dos carros oficiais me pegam desprevenido enquanto me livro dos fios castanhos que vão para cima dos olhos, e lá embaixo posso ouvir o barulho das vozes tumultuadas dos passantes.

Soltando a tampa da lente, afasto um pouco os cotovelos para chegar a um ângulo de 45 graus. Essa distância entre os braços é perfeita para manejar uma câmera de zoom e ajustar manualmente o foco. Ela reage facilmente ao toque dos dedos.

Na rua, policiais armados fazem um cerco em torno do local, e vejo sem dificuldades que meu ponto de observação está na entrada de um beco, entre duas casas aparentemente para locação.

Uso o olho direito para mirar e procurar desavisadamente pelo alvo. Tudo dentro da fotografia se verá na perspectiva de quem estiver na rua, parado a poucos metros do local, e a distância entre mim e aquela cena já não importa.

Eu posso ver TUDO.

“Afastem-se por favor ou terei que usar de força!”, grita uma policial jovem, na casa dos 40 anos. “Isto aqui é uma cena de crime, ninguém ultrapasse a faixa amarela”.

A expressão no rosto dos presentes é assombrosa, como se um manto de melancolia e ansiedade cobrisse o lugar. É aquilo que os acerca de seu maior medo como criaturas humanas: a morte.

Poucos metros dali uma faixa amarela proibindo a presença e delimitando o local está sendo enrolada em volta de postes e de caixas de correio nas proximidades da calçada.

Uma ambulância chega ao local.

Dois homens caminham de um lado ao outro e falam entre si:

“Espero que aquele imprestável do Bennett tenha recebido a mensagem de alerta. Por sorte, uma testemunha viu o corpo ser desovado e nos avisou antes que a polícia pudesse vir aqui. Não é todo dia que temos as notícias em primeiríssima mão!”

O outro homem, o de bigode alemão, parece querer pôr uma das mãos no ombro do colega, e ele o faz. “Fique calmo, ele é o melhor fotojornalista que temos nesta sessão”, responde. E eu leio os seus lábios.

Após seguir os dois homens por um curto tempo e concluir que a discussão não acabará por ali, aumento a distância focal da lente para macro e, segundos depois, avisto algo atrás deles. É algo orgânico. Semelhante a uma mão, embora não consiga distinguir ainda se é homem ou mulher.

Tal coisa está imóvel e estirada no chão.

Nesse momento, estou vibrante de excitação. Posso sentir os músculos da face alongando e se abrindo em um sorriso e, em meu interior, dou saltos de alegria por minha precisão e habilidade com a câmera teleobjetiva.

Me concentro então naquele único ponto e, apesar da distorção da nitidez do objeto em razão da proporção do restante do ambiente, sou capaz de ver claramente o que é.

E QUEM é? Uma mão feminina. Ela possui dedos longos e o dorso delicado.

A tragédia trouxe a ela uma palidez excepcional, além do tom que a pele deveria ter quando ainda estava viva. É uma verdade dura e a crueza do momento exposto a mim em seus milhares de megapixels.

Rapidamente, dou o clique e flagro o momento, acompanhando, com a câmera em mãos, o restante do corpo da vítima.

Os olhos estão abertos e fixos, vazios de qualquer indício de espírito.

São azuis com mesclas verdes, claros e transparentes como a água em um lago prestes a congelar. E estes nunca mais serão capazes de mirar qualquer lugar novamente.

Uma flecha está cravada no peito, com a metade quebrada, e a madeira lascada, manchada com o sangue seco, que, horas antes, escorreu ao redor.

Sinto meu coração ao descrever a bela aparência da jovem, com a fisgada dolorosa de uma angustiante afeição.

Logo em seguida, junto as minhas coisas e me apresso a ir embora. Quero deixar para trás aquele pesar, junto com a moça e os encantadores traços.

Duas da tarde.

Sou visto por um vizinho que traz o lixo para fora.

Nos cumprimentamos com acenos e logo ele afirma, usando seu tom mais alegre: “Taylor, não esperava que fosse chegar tão cedo! ”.

Dou atenção àquele homem, e respondo qualquer coisa com a voz fraca. Levo os olhos até a caixa de correio e pego algo com enormes letras negras: Mr. Taylor B.

Meus lábios não dizem nada mais, e meus pés me conduzem de volta para dentro. Em casa, costumo ter um quarto escuro para revelar as fotos. É o cômodo cuja curiosidade sempre me faz passar boa parte do tempo confortavelmente em pé.

Tiro a bolsa com os equipamentos de cima dos ombros e a encosto no chão, sentindo o cansaço físico do trabalho sumir e, aos poucos, dando lugar ao vintage do lar.

Porém, a verdade é que há algo de errado.

Se não fossem as paredes, qual seria o sentimento ao olhar para elas?

Compreendo que quer aparentar algo a mais, para além daquele mundo cinza ao qual me pertenço. E me pergunto como seria do outro lado. O lado dela.

De repente, uma constatação surge em mente, de que eu tirei mais fotos do que o necessário desta vez. É algo incomum, talvez pelo propósito que me levou a fazer aquilo.

Foi em algum momento quando meus dedos deram os cliques e a minha adrenalina como profissional estava acentuada ao máximo. Pensei em ficar com uma foto da garota morta.

Porque ela não parecia um cadáver, e porque ela não parecia menos bela do que era?

As fotografias estão prontas. Apenas preciso separar cuidadosamente, pelo ângulo tirado, quais mandarei para o jornal, quais vão para os peritos da polícia, e qual eu guardarei.

Nesse momento, sou capaz de reparar na pessoa da foto. E em todos os detalhes que perdi em cima daquele prédio. Descrevo em voz alta:

“Lábios arredondados e caramelos como um pêssego maduro; bochechas altas e bem talhadas; sobrancelhas angulosas e fartas; um nariz pequeno; cabelos amendoados e volumosos; uma tatuagem de linhas pretas muito finas embelezam o seu pulso e parte do antebraço com o contorno de amplos girassóis. O corpo está em uma posição que determina a sua fragilidade, com o rosto levemente inclinado para a esquerda”.

A moça era pequena e curvilínea e seu aspecto angelical atrai minha atenção. Pela primeira vez como fotógrafo, tento imaginar como foram os últimos momentos antes da morte.

“Uma incógnita que talvez fosse amenizada por sua expressão apática”, penso.

Duas semanas depois.

Meu dia de folga não oferece nada além de tédio e de uma insaciável vontade de tomar sorvete de pistache.

Eu conheço uma sorveteria a duas quadras de casa, mas, ironicamente, não conheço o restante da rua. Todas as lojas parecem novas para mim e para meu indefinido conhecimento das ruas de Nova Orleans, Louisiana.

Me desloco devagar, com uma marcha lenta e pensativa, na companhia de toda a vivacidade do verde de verão preenchendo o panorama ao redor de meus pés.

Não estou distante do destino, mas me interrompo em frente a vidraça de um sobrado. Estou em choque, parado e olhando para dentro, apenas assistindo a completos estranhos. Atrás do vidro, em uma sala ampla e praticamente sem mobília, ensaia um grupo de teatro.

Ajo por impulso e bato na porta quando vejo a garota. Percebo que ela é idêntica a alguém que uma vez conheci.

“Posso entrar e observar um pouco?”, pergunto.

Ela sorri. “Claro”, diz.

Seu rosto é significativo para mim, pois é gêmeo daquela moça.

Seu corpo transborda vida, assim como seus movimentos, e sem dúvida, é um belo reflexo do que a outra teria sido, talvez. Mas com a ausência da tatuagem na pele.

Esta é doce e espontânea.

Seus cabelos parecem flutuar à medida que gira o corpo com os braços estendidos. A mesma cor de amêndoas. Os mesmos olhos azuis profundos.

E a voz que teria algum dia se assemelhado à voz da irmã. Ela para de girar e agora se concentra em um pequeno monólogo. “Enquanto cumprimos promessas, elas se perpetuam em nossas consciências. É algo que nos seguirá pela eternidade”. As mãos sobem ao peito. “Oh! ”, ela exclama. “O destino não sabia que a sua vida tomaria uma direção diferente e nos afastaria”. Abaixa as mãos e deixa os braços imóveis ao lado do corpo. “Cadê o sentido agora?”. Os olhos dela se fecham e ela sussurra. “Ela não queria morrer junto com as promessas que fez. Ela não queria desaparecer pela eternidade”.

Ouço os aplausos e me viro a tempo de perceber que todos estão em pé. Eles aplaudem a perplexidade e as emoções da interpretação.

Mas não me junto ao grupo. Apenas caminho em direção à porta e saio sem agradecer pelo que vi. Me mantenho afastado também mentalmente, como se em meu interior se instalasse um manto que cobre a vontade de pertencer ao lugar.

Nesse momento, me encontro ébrio, e pelos próprios sentimentos, ainda que esteja completamente sóbrio em seu sentido literal. Estou com o desequilíbrio de quem se embriaga, disso não tenho dúvidas. Mal me mantive em pé e estava sendo tomado por uma onda de sentimentos existencialistas. Sem ao menos ter ingerido álcool, pareço desesperado, exatamente como um bêbado que se sente leve e triste em seu ápice de pouca lucidez.

Saio do prédio com o coração atônito, desesperado para alcançar algo, e sem que meus sentidos realmente funcionassem direito.

O que é essa sensação de inutilidade toda?

Simplesmente, estive imóvel diante da senhorita que vagou por meus pensamentos durante horas. Não era de fato ela.

Mas poderia ser. Essa ainda tinha vitalidade, tinha liberdade para se expressar livremente sem as amarras de um corpo inerte.

Mas….

Quem eu seria naquele cenário, me pergunto, além de só alguém que espreita por trás da vida? “Não sou ninguém”, penso. “Sou apenas uma sombra”.

Alguém que foi capaz de ver um anjo.