Sexualidade e gênero

“Você faz sua história”

Incomodado com injustiças sociais, o estudante de cinema Charles Morais encontrou, na drag Charlie, uma forma de protesto

Marcos Gonçalves

Foto acima: Estudante de Cinema e Audiovisual na UFRB, Charles já atuou como assistente de produção, diretor e roteirista (Ysllei Nogueira)

Charles Morais é mineiro. Mas carrega um pouco de baianidade. Saiu de São Sebastião do Paraíso para estudar cinema na Universidade Federal do Recôncavo Baiano, a UFRB. Apesar da saudade da casa dos pais e dos encontros com amigos, está desfrutando da cultura, dos aspectos históricos e das festividades de Cachoeira, município onde mora.

A tranquilidade do lugar permite a ele focar em projetos ligados à aceitação da homossexualidade e do corpo, dificuldade que ele mesmo enfrentou. Criou a drag Charlie como forma de se manifestar politicamente. E pensa nos jovens, para os quais desenvolve uma pesquisa sobre produtos audiovisuais na formação do conhecimento.

A preocupação com uma sociedade mais justa tem sido premiada. Em 2016, um projeto do qual participou faturou o primeiro lugar no Inova Senai Nacional.

Confira os principais trechos da entrevista concedida ao Agenda Sette.

Como foi a escolha do curso de cinema? E por que a UFRB?

Sempre tive medo de começar uma faculdade e não gostar. Já no primeiro ano do Ensino Médio, comecei a pesquisar sobre cursos universitários que existiam no Brasil e com que eu me identificasse. Até porque eu sabia que, no terceiro, eu teria muita cobrança, até mesmo minha, sobre qual curso escolher. Isso se eu passasse no vestibular. Aí, então, me identifiquei muito com alguns cursos que separei para poder pesquisar mais a fundo. Entre eles, arquitetura e urbanismo, matemática e outros que não me recordo agora. Porém, eu fazia curso técnico de cinema no Senac Franca e o último módulo era interpretação para vídeo. A partir daí, me interessei em saber manipular as câmeras e toda a produção por trás delas. Não só estar no palco interpretando, mas saber como tudo funciona. Cinema já era uma das minhas opções e passou a ser a primeira depois desse curso. Quando comecei a fazer vestibular, foi para cinema, com segunda opção em arquitetura e urbanismo. Sempre tive facilidade na área de exatas, mas sempre me identifiquei e gostei bastante de humanas. Dentro dessa área, arte e ciências aplicadas, porque sempre fiz teatro. Sempre tive vontade de ser drag – hoje eu sou. Sempre gostei de trabalhar com eventos, performances e afins. Logo, prestei vários vestibulares, como Enem, Fuvest, Unicamp e CEUNSP, que eram faculdades mais próximas de mim e que tinham curso de cinema. Passei no CEUNSP com bolsa, mas não foi 100%. Eu pagava faculdade, moradia e coisas básicas. Mas as coisas começaram a ficar difíceis financeiramente, por ter de me sustentar fora e não conseguir emprego. Como tinha feito Enem, já no primeiro semestre eu passaria na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, mas acabei desistindo, por ser muito longe, e fui para Salto. No meio do ano, me inscrevi novamente, mas já sem esperanças. Coloquei a UFRB com primeira opção de curso em cinema. Mas achei que não fosse passar. Nas férias do CEUNSP, saiu a lista. Meu nome estava lá. Então, a escolha pela UFRB foi mais pelo fato de que a minha nota se encaixava dentro do padrão do SISU. Depois de ter passado, foi que pesquisei sobre a universidade e vi que não foi uma escolha nem um pouco ruim. É a única universidade do Brasil que tem nota 5 no MEC em cinema e audiovisual. Então, estudo na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), no Centro de Artes, Humanidades e Letras, que fica em Cachoeira, e não me arrependo, apesar da distância do meu local de nascimento, criação e da família.

Depois de se formar, Charles também sonha em ajudar os irmãos (Foto: Ysllei Nogueira)

Como foi se acostumar a uma nova vida longe da família?

No início era bem mais complicado, emocionalmente falando. Tenho três irmãos, minha casa sempre foi cheia de gente, tenho vários primos… E ir para uma cidade nova, sozinho, onde não se conhece ninguém, é um recomeço de tudo. A gente tem que fazer novas amizades, conhecer novas pessoas, para que não fique sozinho, isolado. Hoje em dia, é bem mais fácil. Ainda sinto falta de casa, dos pais, da família, mas, ao mesmo tempo, tenho um propósito e acho que isso me move a continuar. Se estou longe de casa é por crescimento pessoal e profissional, de maturidade mesmo, de perder esses laços, esse cordão umbilical. É poder criar a própria história. Você já foi criado e, agora, quem faz a continuação dessa história é você.

Como foi a mudança para a Bahia?

Quando fiquei sabendo que tinha passado, tinha uma semana para me organizar e vir fazer a pré-matrícula. Vim sozinho, num voo de ida e volta, só para a pré-matrícula. Aí, tive mais um mês e meio para me organizar antes da mudança. Meus pais vieram comigo. A Bahia é um lugar incrível, que vai além das festividades locais que todos conhecem. Não desmerecendo as festividades, porque Carnaval em Salvador é o máximo. Mas é um lugar muito humilde e tranquilo, com uma cultura muito histórica e um povo muito heroico.

Gostou da cidade?

Gosto bastante de onde moro. É uma cidade pequena e cheia de história. Às vezes, sinto falta de uma cidade grande, mas aqui é muito bom, movimentado e cheio de festividades.

Você também é drag. Como ela surgiu?

Sempre tive vontade de me montar e criar uma identidade artística para além do “eu” enquanto Charles. A drag, pra mim, é um refúgio. Me sinto bem estando montado. É uma forma de usar meu corpo politicamente e fazer arte para todo canto. Uma vez, me convidaram para tocar como DJ em uma festa. Fiquei um pouco receoso, pois nunca havia tocado, mas achei uma oportunidade incrível para estrear Charlie, minha drag.

Sua família a aceita?

No início, quando me assumi, foi bem complicado dentro de casa, até chegar no ponto em que eu não me aceitava. Mas, com o tempo, fui me aceitando e conversando com meus pais. Hoje, é bem mais tranquilo. Eles sabem da minha sexualidade e são super parceiros comigo. Sobre a drag, não cheguei a conversar com eles ainda. Minha mãe sabe da drag e já viu algumas fotos pelas minhas redes, mas eles nunca viram ela ao vivo, até porque ela é recente!

Charles aproveitou uma festa para lançar a drag Charlie: uso político do corpo (Foto: Ysllei Nogueira)

Você está fazendo a sua história do jeito que sonhou?

Sou uma pessoa que sonha muito alto, mas sei que existem vários caminhos a se trilhar. Ainda não estou no ápice de minha vida e sei que ainda tenho muito tempo para alcançar, mas estou subindo cada degrau de uma vez! Apesar de todos termos dias e momentos difíceis, sei que estou fazendo o que me propus da melhor maneira possível e espero um dia realizar meus sonhos, ajudar meus irmãos a realizar os deles e poder ter uma missão enquanto ser humano que convive em uma sociedade, que sabemos o quão injusta é.

Como surgiu a ideia para o Inova Nacional?

Ainda fico em choque ao perceber que já faz um tempo em que fui apresentar esse projeto. Na verdade, o Acelerador Manual para Máquinas de Costuras Mecânica e Industrial foi uma ideia de Ana Maria, que era professora de Costura do Senai. Ela, juntamente com a Vanessa Oliveira, também professora do Senai, nas áreas administrativas e logísticas, me convidou a fazer parte do projeto, me voltando para as questões administrativas e de marketing do projeto. Nós, em conjunto, trabalhamos para melhorar a ideia e conseguimos receber o primeiro lugar no Inova Senai Nacional em 2016. Uma experiência incrível de aprendizado que vou levar sempre comigo.

Tem produções de audiovisual? Qual o conceito que mais utiliza?

Na área de cinema e audiovisual, costumo trabalhar na produção. Tenho alguns filmes como roteirista, assistente de produção e diretor de produção. Atualmente, estou dirigindo e fazendo direção de arte, as duas áreas pela primeira vez, de um videoclipe de dois cantores daqui de Cachoeira. Busco sempre falar sobre questões que perpassam minha vida, como homoafetividade, afetos, conhecimento do próprio corpo e autoaceitação. Mas meu foco é poder trabalhar com filmes infanto-juvenis. Estou desenvolvendo uma pesquisa sobre essa área.

Pode falar mais sobre essa pesquisa?

Ainda estou desenvolvendo, na fase de formulação do anteprojeto e pesquisa. Então, não tenho muitas informações. A ideia é pesquisar sobre como o produtos audiovisuais infanto-juvenis atuais afetam na formação do conhecimento.

Para Charles, a Bahia é um lugar de muita história e de um povo heroico (Foto: Ysllei Nogueira)