Espírito do tempo

Luto, do verbo lutar

Famílias conseguem transformar a dor da perda de um parente, comum em época de Covid, em homenagens aos que partiram

Pedro Garcia

Foto acima: O enfrentamento ao luto é diferente para cada um; no caso da família Braga, a solução encontrada foi a busca por um mundo melhor (Acervo pessoal)

Mariana Braga era uma jovem moradora de Presidente Prudente, no oeste do estado de São Paulo. De uma família envolvida com trabalhos religiosos, atuava como monitora de acampamento, uma atividade que adorava. O passatempo favorito era estar com os amigos da vizinhança.

Tinha um sonho nada modesto: mudar o mundo, contribuir para uma sociedade melhor. Não tinha muita certeza de como faria isso, mas queria viver para o serviço público, a caridade e a humildade.

Em 2002, ela se candidatou a uma vaga no curso de Engenharia Ambiental, no campus local da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Foi aprovada. Toda a família comemorou muito o resultado. Mas ninguém estava mais feliz que Mariana.

No dia 22 de fevereiro de 2003, o primeiro dia letivo do ano, jantou com os pais em casa e depois foi à universidade, para uma festa de recepção promovida pelos alunos da Unesp, autorizada pela diretoria e que era realizada dentro do campus. A última vez em que foi vista viva.

Por volta da meia-noite, começou um tiroteio motivado por uma disputa de drogas e uma das balas atingiu a jovem, que não tinha nada a ver com a história. Um primo a socorreu, chamando uma ambulância. Transferida para a Santa Cassa, morreu no começo da tarde seguinte.

A Unesp reagiu, proibindo as festas e aumentando a segurança e o controle na entrada, bem como se articulando, em todo o estado, para ampliar a presença da Polícia Militar nos bairros ao redor das unidades.

Em abril de 2004, Sidney Zanardo, identificado como o responsável pelo tiro, foi condenado a 20 anos de prisão por homicídio. Mas uma apelação criminal obteve a redução da pena: 13 anos em regime fechado, cumpridos na Penitenciária de Andradina, no noroeste paulista, e outros seis em regime semiaberto.

Os parentes, em vez de sofrerem em silêncio, decidiram agir, no intuito de evitar tragédias parecidas. Com apoio da paróquia, criaram a Missão Mariana Braga, para lutar contra a violência urbana por meio do acolhimento e mobilização das comunidades em todos os bairros de Presidente Prudente e outras cidades do país.

Valendo-se da força de amigos e vizinhos, e do propósito do projeto, conseguiram vencer o processo de luto e erguer um legado. “Não fosse a nossa fé e o apoio do nosso bairro, a Vila Maristela, não estaríamos aqui hoje,” conta Marina, irmã de Mariana. “Minha irmã não esteve aqui para presenciar, mas, pela glória de Deus, está vendo acontecer o que queria. Ela mudou o mundo.”

As mudanças são vistas por toda a cidade. Nas grandes avenidas, foram espalhadas mensagens do movimento e centenas de pessoas já assistiram a palestras e outros eventos promovidos pela missão. Mariana pode não ter tido a chance, mas quem ficou busca construir um pedaço de mundo no qual ela gostaria de ter vivido.

Mariana estava na Unesp e também cursava Serviço Social em uma universidade particular: desejava atender a população gratuitamente e contribuir com uma sociedade melhor (Foto: Acervo da família)

Viver o luto

O luto é universal. Apesar das diferenças culturais e sociais entre os humanos, os rituais ligados às perdas aparecem em todas as sociedades desde a era paleolítica, cada uma a seu modo, cada indivíduo do seu jeito.

Segundo o psicólogo Wesley de Oliveira, de Franca, trata-se de um processo psíquico. Quem passa por uma mudança brusca, como a ausência de um ente querido, irá reordenar a energia que ia para aquele ou aquilo que amava. O objeto de amor deixa de existir e passa a habitar as memórias. A falta persiste, e pode ser assim pelo resto da vida, mas é possível voltar a uma existência plena.

O antropólogo Laércio Dias, professor da Unesp e especialista em saúde e doença, vê o luto como um ritual. Ele explica que os rituais são processos em que um grupo social celebra, mantém e renova o mundo onde vive. Eles se definem por uma ação que se repete no tempo, possui uma estrutura regular e é revestida de significados.

São esses significados que as pessoas buscam quando sofrem uma perda. Muitos “porquês”, às vezes não saudáveis, passam pela cabeça do enlutado: raiva, dor, saudade, tristeza. Sentimentos que a família e a comunidade podem ajudar a enfrentar.

Apesar de a morte ser para todos, o horror a ela e à doença, conforme Dias, são exclusividade da sociedade ocidental contemporânea. Com a perda de influência do cristianismo no Ocidente, o indivíduo passou a se concentrar no que é concreto, como a vitalidade, a boa saúde. Mas, como isso é efêmero, acaba mergulhando num vazio quando a juventude e a vida se vão.

“Embora não haja estudos sobre o tema, o que se observa é que, onde o sentido sobrenatural da vida não tem sido esvaziado como no Ocidente, a experiência da finitude da vida e dos sinais que normalmente a precedem, como a perda da beleza, são vividas com mais sentido e, portanto, melhor,” relata o professor.

Por razões emocionais, culturais ou religiosas, os ocidentais externalizam a busca por significados em homenagens ao falecido “Os aspectos simbólicos do ritual expressam algo sobre a condição social dos indivíduos que participam dele, porque são uma reafirmação periódica dos termos sob os quais os membros de determinada cultura devem interagir para que haja determinado tipo de coesão social”, explica Dias.

Tornar o luto público permite contar com o apoio do grupo social. Os vínculos são reestabelecidos e fortalecidos, as regras de interação reforçadas e o mundo social daquela comunidade volta a um estado de normalidade.

Durante a pandemia

Mas e quando isso não é possível, como na pandemia de Covid-19, que impediu os rituais, diferente do que ocorreu no caso da Mariana? Dias afirma que o velório, por mais doloroso que seja, é um momento no qual a pessoa se depara com o real, o que favorece a elaboração. “Há um mecanismo de negação diante do sofrimento. E confrontar com o real pode favorecer o trabalho de aceitação.”

Com a impossibilidade imposta pelo novo coronavírus, as famílias estão se voltando a outros tipos de homenagens que busquem concluir projetos interrompidos pela morte. Flavio Passos, jornalista da TV Tribuna em Santos-SP, teve uma é um exemplo. A avó de coração Maria Lúcia Tolentino do Carmo era, segundo ele, uma mulher de princípios. Acreditava em justiça e não suportava ver pessoas sofrerem. Gostava de receber pessoas com bolo e café, de estar próxima dos amigos e de passear pela cidade.

Tinha feito uma cirurgia no quadril, que ajudou a melhorar a mobilidade. Ativa, levava uma vida feliz em São Paulo. Até a força das circunstâncias deu um golpe. Um mal-estar de final de semana a levou para o hospital. Com um quadro grave de Covid-19, não voltaria para a família. Nem para o crochê, motivo de tanto prazer.

“Por conta da pandemia, não foi possível reunir a família, nem mesmo pra uma despedida apropriada. Mais um acontecido terrível em meio a tantos outros que estamos passando em sociedade e para mim, pessoalmente”, declara o jornalista.

Uma amiga de Flávio, a também jornalista Gabriela Monteiro o convidou a dar um depoimento. Ela é voluntária do projeto Inumeráveis, um memorial eletrônico criado pelo artista plástico Edson Pavoni, de São Paulo, com apoio de jornalistas voluntários de todo o Brasil, que publica histórias de pessoas que não resistiram ao novo coronavírus.

A homenagem à avó foi feita por Flavio e uma das primas dele, Bianca. O relato era tão comovente que produtores do Fantástico, programa dominical da Rede Globo, selecionaram os textos para serem interpretados na voz da atriz Christiane Torloni. Para os netos, foi uma alegria saber que a trajetória de Dona Maria seria contada para tanta gente, em rede nacional, narrada por alguém de que tanto gostavam.

Apesar da oportunidade, Flavio rejeita o título de personagem nessa história. “Sinto que sou uma testemunha de tudo que aconteceu com a minha avó. Até por não sermos a única família a ter que lidar com o luto na pandemia. Aliás, longe disso.”

Ele considera que a criação da narrativa e a busca de significados na perda foram fortemente marcadas pela profissão e pelo contato que teve com a doença em outros momentos. “Acredito que ser jornalista me ajuda a lidar com isso de maneira melhor. Afinal de contas, já vi muitas coisas ruins e sei que não é exclusividade minha, ou da minha família, passar por dor e sofrimento. O mundo é um lugar muito difícil, a vida não é fácil e temos que seguir em frente.”

O projeto Inumeráveis na internet: visitantes podem conhecer as histórias por trás dos números da Covid-19 e relatar a vida dos entes queridos que morreram na pandemia (Imagem: Divulgação)

Texto em homenagem a Maria Lucia Tolentino do Carmo

1946 – 2020

Dos amores da vida, Di nunca esqueceu de Tonho, da família e do Corinthians.

Foi em Murici, Alagoas, que Dona Lúcia deu o seu choro de estreia nesse mundo que provavelmente jamais coube no tamanho de seu sorriso.

O paradoxo é também parte do que ela era: uma pessoa que amava conversar, na mesma medida que amava reclamar, na mesma medida que amava sorrir a agradecer.

Das dores no joelho, passando pelo ombro e até mesmo no pulso, suas dores eram marcas de uma vida repleta de história e bom humor.

Essa paixão pelo que vem da ordem familiar regeu todas as suas escolhas, até mesmo de moradia. Dona Lúcia construiu, ao lado de Seu Antônio, uma gigante casa na Freguesia do Ó que comportava todos os seus.

Colheu os frutos desse amor com uma família que, até o fim, encaixou visitas quase que diárias a sua casa, sempre por perto, sempre com fome, prontos para comer suas tapiocas e bolos.

Seu olhar sereno e o seu sorriso eram contrastes aos seus repentes explosivos quando necessário, acompanhados de seu sotaque nordestino empolgado e cantado.

As viagens à chácara agora terão um sabor agridoce. E seus abraços, tão inesquecíveis quanto suas risadas, são o que vão ficar de mais forte na lembrança de todos.

Jornalista desta história, Gabriela Monteiro, em entrevista feita com neto Flávio Passos, em 14 de maio de 2020.

Di era uma corintiana fanática, brincalhona e que adorava implicar com seu marido palmeirense, com quem viveu praticamente a vida inteira. Em 50 anos de casamento, Tonho e Di foram pais de seis filhos: Alda, Luiz, Adalberto, Aldo, Júnior e Aguinaldo.

Generosa e bondosa com suas irmãs e amigas, Di se tornava uma leoa quando mexiam com seus filhos e netos, defendendo-os com unhas e dentes. Trabalhava como dona de casa, depois de sair de Murici, interior de Alagoas, para São Paulo.

Quando sobrava um tempo, Di gostava de fazer tricô e de telefonar para as irmãs. Da vida, não quis se despedir em momento algum.

Suas últimas palavras foram dedicadas ao esposo, a quem dava o primeiro bom dia e o último boa noite.

“Tonho, volto logo.”

Maria nasceu em Murici (AL) e faleceu em São Paulo (SP), aos 74 anos, vítima do novo coronavírus.

Jornalista desta história, Josué Seixas, em entrevista feita com a neta Bianca, em 18 de maio de 2020.

Fonte: Inumeráveis (inumeraveis.com.br)

*Esta reportagem é uma das que integram a Revista Dois Metros, produzida por estudantes do segundo ano de Jornalismo da Unifran no segundo semestre de 2020. Clique aqui para ler a revista toda