Espírito do tempo

“Pessoal apavorado”

Auxiliar de enfermagem de Franca conta como a pandemia de Covid-19 afetou o psicológico dos profissionais de saúde

Salomão Rodrigues

Foto acima: Kátia viu profissionais de saúde que, por causa da pressão no dia a dia do trabalho, deixaram o serviço (Banco de imagens)

A auxiliar de enfermagem Kátia Ester Aparecido de Oliveira está na linha de frente do combate à Covid-19. Atendendo na Unidade Básica de Saúde (UBS) do Jardim Paulista, em Franca, desde 2017, para a qual foi convocada por concurso público, diz que a área de saúde da cidade enfrentou dois momentos bastante distintos com a pandemia: primeiro, houve uma desconfiança se a doença realmente existia ou se era politicagem. Depois, bateu o pavor. Alguns médicos não queriam nem atender, com medo da contaminação.

Ela se formou em 2001, mas, como estava grávida na época, só começou a trabalhar na área em 2005, quando entrou, também, no curso técnico de enfermagem no Senac. Em outubro daquele ano, passou a fazer parte do corpo de profissionais da Santa Casa. Já em 2006, encararia uma dupla jornada, já que foi contratada, também, para atuar por um ano em um hospital particular.

Em 2014, ficou sabendo da aprovação para o Hospital das Clínicas (HC) de Ribeirão Preto, mas preferiu permanecer em Franca. Dois anos depois, teria uma dupla conquista: o início da faculdade de Psicologia e a convocação, por um ano, para o Pronto Socorro Álvaro Azzuz.

Em 2017, pediu demissão da Santa Casa, por causa da dificuldade de conciliar emprego, vida pessoal e estudos. Mas, em dezembro, veio nova aprovação em concurso, dessa vez para a UBS do Jardim Paulista, onde está até hoje.

Nessa entrevista, ela revela um pouco de sua história de vida, as diferenças entre instituições públicas e privadas e como está o enfrentamento da Covid-19. Confira os principais trechos.

Durante sua vida profissional, já teve experiências tanto em instituições de saúde públicas quanto particulares. Quais as principais diferenças entre uma e outra?

Olha, apesar de os funcionários serem praticamente os mesmos, na saúde privada você trabalha não somente pra seguir os protocolos da instituição. Você trabalha também para aquele usuário. Então, muitas vezes, tem ofensa, certo assédio moral e você tem que estar sorridente. E, muitas vezes, o funcionário não tem respaldo. A diferença do público para o privado é que você tem respaldo. No público, quando tem alguma percepção do seu superior que há alguma coisa, que tem alguma insatisfação do cliente e que ele está sendo ofensivo com algum funcionário, procura conversar com o cliente, com o paciente que está ali na instituição, procurando analisar qual que é a queixa, orientar e conversar sobre o serviço que é prestado. No privado não. O cliente sempre tem razão.

E é muito grande a diferença?

Sim… Hoje em dia, já deu uma mudada, mas, no período em que trabalhei no privado, era muito presente esse tipo de ocorrência. Hoje, as pessoas estão mais esclarecidas e valorizando um pouco mais. Na saúde pública, geralmente, o profissional tem uma estabilidade maior. Porque, se trabalhar bem, garante seu emprego. Na privada, nem sempre. Mesmo ele sendo bom profissional, se, em algum momento, desagradar de alguma forma ou fugir da conduta, mesmo que ele tenha uma justificativa plausível, muitas vezes ele vai ser retirado.

E a remuneração é parecida?

Os salários não eram diferentes não. O que mudava eram os benefícios. Na privada, havia benefícios. Na pública, não. Atualmente, na Santa Casa, o pessoal recebe um vale alimentação simbólico, mas precisa seguir algumas regras. Pra ter um vale alimentação de sessenta reais, não pode ter falta, não pode ter atestado e não pode chegar atrasado. Está vendo? É um benefício muito simbólico mesmo. E mesmo isso está sendo de 2018 pra cá. Antes, não tinha. Trabalhei 12 anos lá e não tinha benefícios assim.

Nesses doze anos trabalhando na Santa Casa de Franca, na sua percepção, ela é bem estruturada, recebe o suporte das autoridades de maneira a suprir todas as necessidades ou falta muita coisa?

Era muito de época. Teve uma época que tinha material à vontade. Só que, mesmo assim, é preciso garantir um bom uso. Então, com o tempo, foram se estabelecendo regras para que os materiais fossem utilizados de maneira adequada, para que não viesse a faltar. Mas tinha uma limitação sim. Porque a população que é atendida é uma população mais carente. Tem pessoas com um pouquinho mais de condição? Tem. Mas tem muita gente que não tem. Então, antigamente, a gente não tinha fraldas e depois passou a ter. Eu falo que é tudo uma questão de administração. Tivemos momentos muito bons e também momentos de mais dificuldades. Não é uma constante. Vai muito de como é a situação econômica atual.

Você sempre se viu na área da saúde?

Não. Trabalhei muitos anos como coladeira de peças [no setor calçadista/. Aí, depois resolvi… A minha irmã também é da área da enfermagem. Quando ela começou, me interessei e fui fazer o curso. Quando terminei, estava gestante e optei por continuar no segmento em que estava mesmo. Em 2005, comecei a trabalhar na área de saúde e gosto bastante. Mesmo hoje estando terminando a faculdade, optando por fazer Psicologia, me vejo na área da saúde. É uma área que gosto.

E Psicologia acaba sendo, também, da área da saúde…

Tem muito a ver. Eu falo assim: no dia a dia, em que você faz o atendimento de pacientes no sofrimento, começa a perceber como as questões psicológicas estão envolvidas. A maior parte do tempo em que trabalhei na Santa Casa, tratei de casos mais distintos, mas, a partir do momento em que fui trabalhar no Pronto Socorro, que era uma realidade que não conhecia, muito distante do que estava acostumada, comecei a ver como as somatizações são frequentes. Como é gritante esse pedido de socorro, como o psicológico das pessoas está afetado e como isso se manifesta nas doenças físicas e nas doenças mentais. É muito interessante, pra quem gosta e tem mais esse olhar de ver além da doença, quando você começa a ver isso. E mesmo hoje trabalhando na atenção primária, tem muita gente que ainda apresenta, que somatiza algumas questões. Então, vejo muito paciente com hipertensão em que se vê que é simplesmente por questões emocionais.

A área da Psicologia da Saúde é uma das que mais carecem de profissionais na esfera pública, né?

Vem crescendo. As pessoas já veem a importância desse profissional, mas, ao mesmo tempo, acho não sabem como é amplo esse trabalho. Ainda acham que o psicólogo é clínico, que só tem que atender individualmente, enquanto é muito mais amplo que isso, como os atendimentos em grupo, quando se trabalha com prevenção de doenças e promoção de saúde. Desejo que cresça, muito, porque é ainda muto carente. Mas existem muitos projetos que têm se expandido. Tenho participado de algumas reuniões sobre a saúde mental e vejo que falta, às vezes, um pouco de investimento. Muitas vezes, eles [autoridades] querem que seja feito um trabalho, mas não querem capacitar nem os que já estão na área. Querem que outros profissionais assumam uma função que não é deles. Há algum tempo, queriam que aumentasse o número de grupos na rede para trabalhar essas questões emocionais, as questões de orientação e tudo mais. Surgiu muito interesse dos profissionais da própria Psicologia. Mas, quando foram fazer uma planilha para somar os gastos, desistiram. Falta um pouco de interesse.

Mesmo sendo uma área que exige tanta responsabilidade?

Sim. Por isso, costumamos dizer: enfermagem até que algo melhor nos separe. É uma área que exige muito e remunera pouco. Vejo isso muito pelo perfil dos funcionários. São muitas pessoas sozinhas. Um grande número de profissionais tem problemas de relacionamento. A grande maioria é separada.

Kátia trabalhou por 12 anos na Santa Casa de Franca (Foto: Acervo pessoal)

O que mudou na sua rotina profissional depois que começou a pandemia?

Pra enfermagem, mudou pouca coisa, porque os atendimentos continuam sendo prestados normalmente, como vacina, medicação, curativos, alguma orientação… O que mudou é que as consultas são feitas em número reduzido. E os pacientes não estão tendo o acompanhamento ambulatorial. Você colhe a queixa, analisa a necessidade e orienta. Têm pacientes que precisam mesmo e os médicos fazem o atendimento. Mas, até pouco tempo, não se fazia atendimento de foram alguma. Fazia-se a orientação.

Mas quando começou a pandemia vocês tiveram algum treinamento ou já eram medidas que faziam parte da rotina?

Os EPIs [Equipamentos de Proteção Individual] já fazem parte da rotina mesmo. O uso da luva, do avental em alguns procedimentos, isso é de extrema necessidade. A máscara era mais quando tinha algum risco com secreções. Não fazia parte da nossa rotina. A gente tem material disponível, nunca teve falta de material não. Sinceramente, a gente nunca teve falta de EPI. Mas não era tão frequente o uso porque era analisado conforme a necessidade. Então, a luva, a gente sempre usou. O jaleco descartável, de acordo com a situação.

Então, nunca faltou material pra vocês? Houve boatos sobre a falta de máscaras e álcool em gel. Isso você nunca presenciou?

Não. De verdade não. Tinha coisa que a gente não tinha muito porque não usava tanto. Então, foi necessário fazer um ajuste conforme a necessidade. O álcool em gel, por exemplo, era usado antes, mas numa menor escala. Não tínhamos o hábito de usar tanto. O álcool 70% era o mais utilizado. A partir do momento em que foi feito esse protocolo de atendimento, foram realizados esses ajustes. Pra máscara também. O gerenciamento das unidades faz um protocolo pra ser seguido por todos. Um manual de como vai ser prestado os atendimentos e o que é necessário. A rede tenta fazer com que seja falada a mesma língua. Qualquer mudança que tiver na saúde pública é passada para as unidades de acordo com o serviço, se é primário ou secundário. Então, as orientações são as mesmas para todo mundo.

Chegam muitas pessoas desorientadas na UBS com relação à pandemia? Você acredita que havia informação suficiente ou as pessoas ainda estão meio perdidas?

O pessoal ficou bastante apavorado, até na classe médica. A histeria que vi mesmo foi na classe médica. A população chega? Chega sim, porque são muitas informações de uma doença nova e por muito tempo se questionava se aquilo era real ou se era política. Na verdade, levou um período pra começar a ter morte. Então, como começou pouco a pouco, muita gente não acreditava ainda que aquilo fosse real.

Tanto por parte de pacientes quanto de médicos?

Tanto de paciente e até da gente da enfermagem. Porque a atenção básica não está na linha de frente. Como tenho a minha irmã e meu cunhado que trabalham no Pronto Socorro, as maiores informações a gente tinha deles, que diziam que as pessoas não têm noção de como estão as coisas. A situação é muito mais grave do que as pessoas imaginam. Os números são maiores. O número de pacientes que têm testado positivo é maior.

No começo, não havia tantos testes. Houve muita subnotificação no número de casos?

É, é tudo muito novo. Não havia muitas informações de como [a doença] agia, de como que era. Foi ficando tudo meio que no ar. Conforme iam chegando as informações, a gente ia ajustando. Mas o que chamou mais atenção foi que a classe médica ficou muito assustada. Os médicos foram os primeiros a dizer que não iam mais atender. Iam atender só casos graves.

Houve um exagero?

Acho que, na verdade, eles ficaram muito assustados. Não sei se a compreensão ou se as informações chegavam com mais rapidez pra eles, porque a classe médica é muito unida, né? Dos médicos que trabalhavam com a gente, a maioria atendia nos hospitais particulares. Então, ao mesmo tempo em que se dizia que os números estavam baixos, eles diziam que já tinha caso de internação na Unimed. Eles passaram a ter mais informações. A pediatra nossa disse “eu não atendo”. Ela ficou apavorada. E, conforme foram crescendo os números, a gente começou a ver pessoas próximas. Porque, muitas vezes, a gente se questionava se era assim mesmo. A informação, a gente passava conforme o pessoal que vinha: não podia entrar sem máscara, com acompanhante, tinha que ter distanciamento de um metro e meio. Até falarem que, por enquanto, não haveria atendimento.

Foi mais difícil transmitir as informações para os jovens ou para os idosos?

Em relação à faixa etária, tem os idosos que são mais rebeldes sim, mas acho que a grande maioria foi pra pessoas mais jovens. Nem digo jovens abaixo de trinta, mas aqueles entre trinta e quarenta anos. Porque, como os idosos são do grupo de risco e já são pacientes que, na grande maioria das vezes, têm alguma comorbidade, eram poucos os que permaneciam descrentes.

Houve boatos de que os profissionais estavam sendo impedidos de divulgar dados sobre a pandemia. Em algum momento, você presenciou algum pedido pra não divulgar as informações corretas, como o número de casos ou algo do tipo?

Não. Nossa chefia fazia parte da comissão da Covid. Então, teve um período, entre junho e agosto, em que passaram a fazer testes conforme solicitação por alguma instituição que fizesse parte da saúde pública. Primeiro, começou a fazer em todos os profissionais de saúde. Depois, em todos os profissionais da rede. Depois, a rede começou a fazer como fizeram no Champagnat [colégio] e na Casa de Acolhimento. E como nossa chefia participava dessa comissão, ela ia junto. Então, em nenhum momento, foi solicitado que não divulgássemos alguma informação. Ainda assim, na imprensa, às vezes, era divulgado que tal lugar não havia registrado novos casos e a gente sabia que havia sim, porque nossa chefia fazia parte da comissão e tinha comentado. Não falava quem era, mas falava quantos casos tinha.

A área da saúde exige algum sacrifício pessoal?

Exige. Por mais que seja uma escolha, a gente vai se adaptando e passa a ser até de forma inconsciente, mas sacrifica demais a vida familiar. Hoje em dia, em que atuo na atenção primária, não trabalho mais sábado e domingo, e consigo ver o quanto a vida familiar fica prejudicada. Porque você trabalha com plantão. Então, passa a se adaptar conforme a necessidade do local. Perde momentos de lazer e, acho que, em longo prazo, isso ganha peso sim.

Exige algum tipo de acompanhamento ou suporte psicológico para os profissionais da saúde?

Não. Não existe. Em tantos anos que trabalho nessa área, nunca vi e digo que é mais um ponto de desvalorização do funcionário, porque ele, muitas vezes, é algo das angústias do outro. A partir do momento que a pessoa está ali com um parente e não consegue lidar com a má noticia, muitas vezes joga em cima do profissional sua frustração. Até hoje, não vi nenhum treinamento para que o profissional seja acolhido. E, muitas vezes, quando você mostra que não está bem, ou você é ignorado ou sofre represália. Acaba virando uma sobrecarga. Porque as pessoas acham que são questões fantasiosas, que é falta de autocontrole, fraqueza, quando, na verdade, o pessoal da saúde também tem problemas em casa. Um grande número toma algum tipo de medicação, passa por algum atendimento com psiquiatra. Tem muito caso de profissional que tem depressão ou que teve alguma tentativa de autoextermínio.

Dá a impressão que as próprias instituições fecham os olhos pra isso…

Ignoram. Ignoram sim. Todo tipo de reunião que é feita é em cima de prestar um bom atendimento. Mas a grande maioria [dos funcionários] é de mulheres com filhos, sozinhas, arrimo de família. São chefes de família, na verdade. E isso tem um peso muito grande. Quantas vezes trabalhei com colega chorando porque está deixando o filho doente em casa, mas não tem como deixar o emprego porque depende daquilo ali. Já presenciei colega de trabalho que estava com familiar com câncer chorar cada vez que via paciente com a mesma doença. Já vi uma colega, senhora idosa, chegar à coordenação e dizer: “não estou dando conta, porque estou aqui cuidando dos outros, mas tinha que estar em casa cuidando da minha filha. Então, a partir de hoje, não venho mais”. Então, vejo que é muito ignorado. Às vezes, quando acontecia algum episódio de descontrole, algum caso em que o profissional ficava muito abalado, chamava o psicólogo da instituição para conversar com o funcionário. Mas momentâneo. Não tinha nenhum tipo de acompanhamento. Era só pra atender aquela demanda. Aí, era enxugar as lágrimas e voltar pro serviço. Ou se acontecia de, mesmo assim, não estar bem, então se passava pelo médico do trabalho e a pessoa era afastada alguns dias. Mas isso, te confesso, vi acontecer só umas duas vezes, porque, nesse caso, o funcionário passou a ser um risco para os pacientes. A própria equipe começava a ficar alerta porque a pessoa começava a ficar muito diferente do que estava acostumada. Mas, tirando isso, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima.

Para a auxiliar, profissionais não têm apoio contra transtornos mentais (Foto: Banco de imagens)