Sexualidade e gênero

Antes só…

Feminicídios aumentaram 127,45% em 2018 no interior de São Paulo, onde cinco mulheres são mortas por mês

Ana Laura Siqueira, Heloísa Taveira, Juliana Teodoro e Moara Ribeiro

Foto acima: 40% dos casos têm como autor o ex ou o atual companheiro da vítima (Banco de imagens)

O ano de 2018 aponta um aumento expressivo no número de casos de feminicídio no interior de São Paulo. Segundo dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP), foram registrados 14 assassinatos a mais que em 2017. Ainda de acordo com o levantamento, esse número poderia ter sido maior, já que houve mais tentativas de feminicídio. Foram 215 tentados, um aumento de 114,36% em relação a 2017. A média da quantidade de mulheres assassinadas nos últimos três anos revela que 57 mulheres são vítimas de feminicídio anualmente no interior. Quase cinco por mês.

Em 2018, as cidades interioranas de São Paulo, aquelas que não pertencem à região metropolitana da capital, somaram mais da metade de todos os casos de feminicídio do Estado. Pelos dados da pesquisa da secretaria, o número de agressões contra mulheres no interior também teve um aumento percentual maior que o registrado em todo o território paulista. A quantidade de vítimas de agressão, nesse caso, saltou de 30.921 para 31.959, 3,35% a mais que em 2017. No Estado todo, mesmo que pouco, também cresceu, de 50.665 para 50.688.

A Secretaria de Segurança Pública divulga todas as ocorrências registradas anualmente por delito, discriminadas por município, exceto quando se trata do feminicídio. Para esse crime, as pesquisas realizadas pela SSP dizem respeito aos dados do Estado, divididos por região metropolitana e interior. Esse fator acarreta uma alta margem de erros no número de casos, já que são subnotificados pelas próprias vítimas.

No Brasil, assim como no Estado de São Paulo, as tentativas de feminicídio também representam um número alto. De acordo com o instituto “Maria da Penha”, a cada dois minutos uma mulher é vítima de arma de fogo e, a cada 22, de espancamento ou estrangulamento. Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) publicado no ano passado informa que isso não é diferente no mundo. A cada seis horas, em algum lugar do globo, uma mulher é assassinada.

Para Instituto “Maria da Penha”, as mulheres que mais correm o risco de incorporar às estatísticas de feminicídio são aquelas presas ao “ciclo da violência”. O instituto destaca quatro fases principais para esse ciclo que, geralmente, são mantidas pelo agressor, cuja figura é, geralmente, a de homem, cônjuge, namorado ou companheiro da vítima. As fases são: aumento da tensão, ato de violência, arrependimento e comportamento carinhoso.

“O abuso pode surgir nas mais diversas formas, não se restringindo apenas à violência física. As pessoas abusivas tentam controlar as outras através de ameaças, manipulações e outras táticas que envolvem, também, abuso emocional, psicológico e verbal, entre outras”, explica a ex-delegada da Mulher de Franca Graciela Ambrósio, agora deputada estadual, sobre as ações do agressor para a manutenção do ciclo.

Maioria dos casos é de feminicídio íntimo, quando há vínculo com o agressor (Banco de imagens)

Segundo Graciela, romper este ciclo pode oferecer mais riscos à vítima que aqueles aos quais ela está exposta vivendo com seu agressor, mas é extremamente necessário. Por isso, ela defende políticas de proteção à mulher que se encontra nesse processo. “Há, em Franca, a recém-criada ‘Casa da Mulher em Situação de Risco’, cuja  implantação se deu pela conscientização da sociedade e do Poder Executivo sobre a importância da importância desse órgão de apoio para o encerramento do ‘ciclo da violência’.”

Em Franca, São Paulo

Em Franca, foram registrados 15 casos de feminicídio nos últimos três anos. Uma jovem francana de 24 anos, que prefere não ter a identidade revelada, relata a experiência que teve há dois anos. Após o término do relacionamento, foi agredida pelo ex-namorado. “Já havíamos terminado uma vez, mas foi uma fase muito perturbada e resolvemos voltar. Quando eu quis terminar de fato, ele não aceitou. Me perseguia, mandava mensagem todos os dias.”

O fim da história é previsível. Após insistentes convites, a jovem aceitou se encontrar com o parceiro, de 26 anos, para esclarecer sua decisão e colocar um ponto final no relacionamento. Na casa do rapaz, a cena foi de violência. Socos, empurrões e tapas marcaram o fim da noite. “Ele não queria aceitar o fim do namoro e ficou muito agressivo após nossa discussão. Me xingou, humilhou, fez ameaças de morte e me deu vários socos. Só parou quando ouviu o portão da casa abrindo.”

Um dos motivos para a vítima não querer se identificar é a sensação de impunidade. Após um mês do ocorrido, ela decidiu denunciar, mas relatou que não teve mais informações. O agressor continua solto e, provavelmente, sem punição. “Depois disso, eu bloqueei ele de todas as redes sociais e fiquei um tempo sem sair de casa. Vi ele poucas vezes, sempre procurei me afastar e, graças a Deus, não tive mais contato, mas ainda tenho medo.”

A maioria dos casos no Brasil é chamada de feminicídio íntimo, quando a vítima tem algum vínculo com o agressor. É por esses casos que a dificuldade em classificar e contabilizar o crime existe, já que se ligam à violência doméstica. Os registros de feminicídio estão sendo mais bem avaliados, mas é difícil fazer um balanço baseado em boletins de ocorrência da polícia.

Sensação de impunidade impede identificação das vítimas e denúncias (Banco de imagens)

A estudante de psicologia do Centro Universitário de Franca (Uni-Facef) Ana Laura Fernandes comenta que a violência contra a mulher é um ato atemporal. “Ela vem ganhando mais visibilidade em nossa época. O fato é que esse tipo de violência sempre existiu e em todos os lugares. Hoje, os direitos humanos buscam igualar as situações entre os sexos que condenam a violência contra a mulher.”

Na Franca dos imperadores

Em memória de Rosane Berteli de Souza, 24 anos (2015)

Rosane Berteli de Souza, de 24 anos, foi morta ao sair do banco onde trabalhava, com um tiro na cabeça em 2015. O atirador era o ex-namorado da vítima, Breno Costa Rezende, de 32 anos. Após o crime, ele atirou em si mesmo e foi encontrado com ferimentos graves na cabeça pela Polícia Militar, que o encaminhou à Santa Casa.

Breno Rezende foi interditado pela justiça quase um ano após o crime. Ele ficou com sequelas do tiro que deu na própria boca e, portanto, foi considerado incapaz de responder judicialmente. Essa interdição deu a Breno o benefício da prisão domiciliar e de estar em recuperação sob os cuidados da família.

Em memória de Cristiane Aparecida Rodrigues, de 39 anos (2016)

Cristiane Aparecida Rodrigues, de 39 anos, também foi morta pelo ex-marido em 2016, no Jardim Paulista. Saindo do trabalho, a sapateira recebeu três facadas e não resistiu. O assassino fugiu, mas foi preso pouco depois e permanece detido. Segundo a polícia, a ação aconteceu após Cristiane cobrar a pensão dos filhos.

Em memória de Amarinilza Maria Custódio, 46 anos (2016)

Tratado como homicídio na época, em dezembro de 2016, uma mulher de 46 anos foi brutalmente assassinada pelo companheiro. De acordo com a polícia, o autor do crime relatou desconfiança de traição por Amarinilza Maria Custódio e a golpeou com um par de muletas. O assassino confessou ser o culpado e ainda revelou que, depois de matar a companheira, manteve relação sexual com o cadáver. Logo após, tomou banho e foi para um bar. Ele foi preso.

Em memória de Etiene Josefa Arruda Coelho, 33 anos (2016)

O caso de Etiene Josefa Arruda Coelho, de 33 anos, teve seu principal suspeito indiciado após um ano e cinco meses. O marido da vítima, Carlos Eduardo Coelho, de 35 anos, foi considerado culpado pelo delegado responsável, mas nega participação no crime e responde ao processo em liberdade há mais de um ano.

Ele descansa, ela em paz

Em 40% dos casos, os feminicídios são cometidos pelo ex ou atual companheiro da vítima. Segundo a lei, o réu pode ser condenado de 12 a 30 anos de prisão.

A história a seguir é da dona de casa Raquel (nome fictício), moradora de Franca. Ela escapou por pouco. Conta que viveu, por 15 anos, num relacionamento abusivo, sofrendo várias agressões do marido. A mulher relata que só deixou de ser vítima da violência após o marido morrer, de complicações de uma doença causada por abuso de álcool.

Enquanto ele estava vivo, Raquel nunca encontrou coragem para denunciá-lo.

O que te fez permanecer tanto tempo nessa relação?

Quando sofremos abusos de pessoas que gostamos, em algum momento, sentimos que somos culpadas de tudo o que está acontecendo. E não entendemos que realmente nos machuca física, psicológica e emocionalmente. Portanto, acaba sendo prolongado. Você sempre acredita que, uma hora, ele vai parar.

Quando ele terminava de agredi-la, como se sentia?

Enxergava em mim uma mulher fraca, incapaz, que não conseguia se livrar daquele cenário pavoroso. Penso que, se ele não tivesse morrido por conta das suas bebidas, eu ainda estaria na mesma situação ou não estaria nem aqui.

Você chegou a pensar que mudanças positivas viriam da parte do seu agressor? Esse pensamento te fazia hesitar em relação a denunciá-lo?

Sempre pensamos que amanhã isso não virá acontecer mais e que a “fase” ruim irá passar. Entrei na igreja com um homem e, conforme foram passando os anos, realmente pude conhecer quem estava do meu lado. O sentimento que ainda restava e o medo que me sufocava deram um espaço de anos para esse relacionamento abusivo e para que as agressões de todo dia continuassem.

Em algum momento pediu ou recebeu ajuda durante os ataques de seu marido?

Minha família sempre soube do que acontecia naquela casa e diziam sempre que me apoiavam quanto à separação. Volto a falar: o medo acaba dominando a gente. E denunciá-lo me parecia ser algo muito difícil de fazer. Até porque eu não poderia prever se realmente aquilo teria um fim e se eu estaria totalmente protegida. Fico incomodada em pensar que ele nunca foi punido e que, mesmo com ele morto, eu não possa fazer nada. Dessa vez porque ele não está aqui. Da primeira, porque ele estava.

Raquel viveu relacionamento abusivo por 15 anos, sofrendo várias agressões (Foto: Moara Ribeiro)