Sexualidade e gênero

Violência obstétrica

Num momento que deveria ser de alegria pela chegada de um filho, mulheres relatam sofrimento na mesa de parto

Carolina Oliveira

Foto acima: Por medo, mulheres que sofreram em hospitais geralmente não revelam identidade (Banco de imagens)

O nascimento de uma criança é uma das experiências mais marcantes e emocionantes na vida de uma mulher. É o final de nove meses de espera, quando todo seu corpo se preparou para essa chegada. A mãe poderá, finalmente, ver o rostinho do bebê. A ansiedade é grande, pois o nome escolhido vai ganhar uma fisionomia e as roupinhas compradas com tanto carinho vão abrigar aquele corpinho minúsculo.

É um turbilhão de sentimentos, todos misturados, que não cabem no peito (nem na barriga) e são acompanhados pelo medo. Medo do novo, de não se adaptar. De não dar conta. O que muitas esperam, nesse processo tão complexo e, às vezes, dolorido, é ser bem acolhida e orientada no hospital onde escolheu dar à luz. Mas nem sempre é assim. Para algumas, o parto passa de um momento de imensa alegria para um trauma.

Estima-se que, no Brasil, uma a cada quatro mulheres sofreram algum tipo de violência obstétrica, nem sempre de forma aberta, pois até mesmo comentários ofensivos são uma forma velada desse problema. Qualquer desrespeito à autonomia ou a integridade física e mental, como ignorar escolhas ou preferências, é violência obstétrica. Mas além de outro medo dessas mulheres, o de denunciar, quase não há punição quando os casos vêm à tona, por causa das dificuldades de comprovar o ocorrido.

O parto é comumente relatado como um procedimento difícil, pois, além das dores extremas, pode ser acompanhado pela solidão dos centros cirúrgicos, pelas humilhações de enfermeiros e médicos e pela invasão dos corpos sem permissão. Nos casos de violência obstétrica, a mulher é silenciada, apagada, no momento em que deveria ser o foco das atenções e cuidados.

Foi o caso de N. N., de Franca, que relata ter vivido momentos de horror. A médica plantonista não queria aceitar a internação da estudante, pois estava pouco dilatada, mesmo após sangramentos importantes. Ela foi mandada para casa, mas teve que voltar pouco tempo depois por conta das dores e de novos sangramentos. Após ser internada, pediu um remédio para umas das enfermeiras, que trouxe um “sorinho” para ajudar.

O soro era a ocitocina, substância que é produzida normalmente pelo corpo da mulher, mas que os hospitais utilizam, na versão sintética, para acelerar o parto. “Fiquei muito tempo sem comer, estava com muita dor e muito fraca. Apaguei na maca e acordei com o exame de toque do médico que havia assumido o plantão. Ele estava com vários estudantes em volta, todos observando e anotando.”

Após o exame, o médico percebeu que o quadro não havia evoluído e a encaminhou para a cesárea. “Estava tão fraca que nem vi direito o que acontecia. Minha visão estava turva. Assim que minha filha nasceu, levaram para longe de mim e eu nem a vi”.

Outra mãe, que pede para não ser identificada, também passou por experiências bastante humilhantes. “Fui internada às sete horas da manhã e passei o dia inteiro lá. Meu marido não pôde ficar comigo e teve que aguardar em uma sala separada. Fiquei sozinha na sala de pré-parto, mas, como as dores estavam suportáveis, fiquei de boa. Mas, lá pelas sete da noite, romperam minha bolsa, que não tinha rompido de forma natural, e começou o meu pesadelo. Tive dores muito fortes, que nem imaginei que eram possíveis. Uma coisa é você imaginar a dor, outra é sentir.”

Uma a cada quatro brasileiras com filhos sofreram violência de profissionais da saúde (Foto: Banco de imagens)

Ela relata que era hostilizada ao expressar a dor. “Eles [enfermeiros e médicos] avisavam que não queriam escutar nenhum grito aqui, que dor todo mundo sente, mas que dava para aguentar caladinha, sem escândalo”.

A pior parte, no entanto, estava por vir. Dentro do centro cirúrgico. “Quando era onze da noite, falei para a enfermeira que precisava ir ao banheiro e ela me mandou levantar da cama, que tava na hora de nascer. Fui andando para o centro cirúrgico, com muita dificuldade. Avisei que meu marido queria acompanhar o parto e ela achou ruim. Começou a berrar pra chamar o marido ‘dessa aí’ e para andarem rápido.”

Chegando à sala de parto, ela foi deitada. Pediram que fizesse força. Mais uma vez sem gritar. “Como eu tinha ficado o dia todo sem comer, nem beber nada, estava muito fraca e avisei a enfermeira. Ela chamou outra enfermeira e as duas subiram na minha barriga, empurrando. Aquilo doeu demais. Depois, o médico disse que ia cortar e simplesmente me cortou. Fez episiotomia [corte na área entre a vagina e o ânus]. Nem me perguntou se eu estava de acordo. Após o parto, levaram minha filha. Todos saíram da sala. Só sobraram eu, o médico e algumas auxiliares. Ele começou a me costurar cantando sertanejo, como se eu fosse um bicho, sei lá. Me senti muito humilhada. Fiquei com vontade de chorar, mas não tinha nem forças pra isso”.

Doulas

No ano passado, foi sancionada uma lei que permite o acompanhamento de doulas em hospitais de Franca, o que trouxe alento a gestantes e novas oportunidades de emprego. É o caso de Karoline Marchetti, que começou a pesquisar sobre o tema quando estava grávida e se viu envolvida no companheirismo de mulheres que estavam na mesma situação, buscando conhecimento e lutando por um parto respeitoso e pelo direito de ter uma doula como acompanhante. “Nesse caminhar, conheci Mara Freira, que me formou doula.”

A palavra doula, do grego abula, significa “aquela que serve”. É uma profissional que trata o parto de uma forma natural e não patológico. Não possui conhecimento técnico da área da saúde, mas dá assistência e informa a mulher durante toda a gestação, parto e pós-parto, sempre buscando mediar situações, trazer harmonia, segurança e consciência do próprio corpo, das mudanças dos procedimentos médicos e, também, da realidade violenta nos hospitais.

Essa profissional tem base intuitiva e prática, pois, durante a gravidez, abre os caminhos para que a gestante compreenda seus desejos e vontades, com informações baseadas na ciência. No parto, tem o papel de coadjuvante, auxiliando nos momentos de dor, com massagens e outros métodos não farmacológicos. Após o nascimento, ainda ajuda no aleitamento e dá apoio emocional à nova mãe.

Karoline afirma que, por ser algo novo, enfrenta dificuldades. “As pessoas não entendem o que é esse trabalho e alguns médicos têm medo de nos deixar entrar para acompanhar as parturientes, pois, com as nossas instruções, fazemos a mulher mais consciente de sua natureza e não aceite todos os procedimentos propostos sem necessidade. Alguns médicos se sentem diminuídos por isso, mas estamos falando da recepção de um novo ser humano e de uma nova mulher-mãe que cuidará desses filhos, que também são filhos de toda uma nação.”

O carinho recebido em casa nem recebe se repete nos hospitais (Foto: Banco de imagens)