Gênios anônimos

Contra o abandono

Associações e protetores independentes lutam contra devolução de animais de estimação que já haviam sido adotados

Maria Júlia Tazinaffo Blanco

Carolina Arantes Cardoso

Jéssica Gonçalves

Foto acima: Cachorro para adoção do canil da Dona Neusa, em São Joaquim da Barra-SP (Acervo Apasfa/São Joaquim)

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que existam, aproximadamente, 30 milhões de cães e gatos vítimas de abandono no Brasil. Diariamente, eles correm riscos de atropelamentos, doenças e agressões.

Um cão, por exemplo, pode viver de 10 a 15 anos, mas, em casos de abandono, a expectativa de vida diminui, justamente, por causa da falta de cuidados. Há relatos, inclusive, de donos que se mudam e deixam os animais nas antigas casas, muitos deles em situações deploráveis.

Na contrapartida do crescimento exorbitante dos animais nas ruas, surgem pessoas que se solidarizam com a causa e, dia após dia, lutam por aqueles que não têm voz. Em Franca, por exemplo, onde estão cerca de três mil animais abandonados, o grupo “Cão que Mia”, que começou há 13 anos com a professora Maria Luisa, organiza feiras de adoções.

“Realizamos a feira, semanalmente, aos sábados. Quinzenalmente, abrimos para que a população leve seus animais para serem doados. Somos o único grupo de Franca que presta este serviço. Doamos cães e gatos, adultos e filhotes. A feira acontece em frente à Padaria Estrela e, caso chova, no estacionamento do Walmart, sempre das 11h às 16h”, explica Milena Primon, voluntária.

Em São Joaquim da Barra-SP, o canil da Associação Protetora dos Animais São Francisco de Assis (Apasfa) abriga cerca de 400 cães e 40 gatos. Está com a capacidade esgotada.

Dona Neusa é a proprietária do canil e defende os animais dando alimento e carinho. Os cães e gatos são de várias idades e todos são castrados no próprio local. Lá, é possível castrar, também, gratuitamente, mesmo os que não sejam do canil. Ao final do processo, os veterinários fazem uma pequena tatuagem nos bichos, para que seja possível identificá-los e saber que já passaram pela cirurgia.

Canil da Apasfa, em São Joaquim, abriga cerca de 400 cães e 40 gatos (Foto: Acervo Apasfa/São Joaquim)

O canil é mantido com repasses da prefeitura e doações de voluntários. Segundo Dona Neusa, algumas pessoas que abandonam jogam os animais por cima do muro do canil. Quando eles não quebram as patinhas, fogem quando os funcionários abrem o portão para trabalhar. Nesse momento, já houve atropelamentos.

Recentemente, a Apasfa, com a ajuda dos voluntários, criou o projeto “Cães Invisíveis”, com o objetivo de dar visibilidade aos animais que vivem no canil. Fotos são postadas no Facebook para que a população os conheça e tenha interesse em adotá-los. Aos domingos, os voluntários também comparecem ao canil para dar banhos nos animais e limpar as baias.

Ao contrário da Apasfa, o Cão que Mia, de Franca, não recebe ajuda da prefeitura. É a população que contribui com doações de ração e moedas em pedágios solidários. Nos 13 anos de trabalho, foram, aproximadamente, 30 mil animais resgatados pelo grupo.

Maus-tratos

De acordo com a Lei Federal 9.605/98, conhecida como Lei dos Crimes Ambientais, em seu artigo 32, “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos” pode resultar em pena de até três anos de detenção e multa.

Apesar de serem considerados crimes, muitos atos não geram pena alguma. A adoção continua sendo a forma mais eficaz de proteger os animais. Guilherme Gumiero adotou duas cadelas no canil da Apasfa. “Considero importante na vida de uma pessoa um animalzinho. Eles enchem nossas vidas de carinho e nós os ajudamos.”

Em Batatais-SP, na Associação Novo Caminho, o número de animais recolhidos vem crescendo. De acordo com a presidente da entidade, Priscila Mazzo, 36, chegam ao local cerca de 350 cães e gatos por mês. Não é possível estimar o percentual exato de crescimento. A única certeza é que as histórias de abandono têm se tornado mais frequentes. Às vezes, os animais vêm em ninhadas inteiras. Com oito, dez filhotes.

A castração também é feita na própria associação – de 150 a 200 mensalmente. Segundo Priscila, as cenas comuns de animais perambulando pelas ruas são explicadas, em parte, pela despreocupação dos tutores. Muita gente tem animais em casa e não castra. Quando nascem os filhotes, são deixados à própria sorte. Procriam e, com isso, mais animais ficam sem dono. Alguns até usam redes sociais para vender ou doar animais não castrados.

O veterinário Rodrigo Pozza, dono de uma clínica em Batatais, cita outro motivo: as doenças. Há situações em que os donos não têm condições de arcar com o tratamento ou, simplesmente, não querem bichos doentes em casa. Por isso, soltam nas ruas. Ele aconselha que uma das formas de evitar doenças é manter as vacinações em dia, o que muitos não fazem.

Voluntários dão banhos aos domingos (Foto: Acervo Apasfa/São Joaquim)

“Sempre tive esse dom de gostar de animais”

A batataense Yolanda Coradini, de 55 anos, é uma das pessoas que exercem trabalhos voluntários e oferecem ajuda aos animais. Ela conta como começou essa história. “Sempre tive esse dom de gostar de animais e, quando os via abandonados na rua, sentia grande compaixão e uma grande desilusão de ver como os humanos podem ter tanta falta de amor e responsabilidade”.

Em Batatais, também existe uma Apasfa, fundada em 2002. Na época, Yolanda e ajudantes expuseram seus objetivos na Câmara Municipal e conseguiram ajuda para organizar bingos e outras ações beneficentes. Há um ano e meio, apareceu, também, uma veterinária, Roberta, disposta a fazer castrações pelo Instituto Nina Rosa.

Yolanda critica a falta de envolvimento de mais pessoas na causa. “Acho que é uma falta da sociedade toda ir atrás disso. A sociedade é culpada, por que é comodista, tanto em Batatais, quanto em outros lugares. Tem gente que pega um animal e não tem responsabilidade, pois não há punição”. Ela tem seis cachorros e dez gatos. Todos adotados.

Devolvidos

As associações de proteção ao animal recolhem e cuidam de animais abandonados, dando carinho, atenção e o respeito que merecem. Além das ONGs, existem os protetores independentes. Todo esse movimento tem, como objetivo, dar uma vida mais digna aos bichos, encaminhando-os para adoção. E os adotantes aparecem, mas, em muitos casos, os animais chegam a ser devolvidos.

Na Apasfa em Batatais, isso não é raro. Silvia Saraco, médica veterinária, acredita que as devoluções acontecem por falta de compromisso. Não se pensa se a associação tem condições de recolher o animal de volta ou se ele vai sofrer com a mudança.

A maioria adota filhotes e, quando eles são devolvidos, muitos já estão maiores, o que dificulta uma nova adoção. Em Pontal-SP, o projeto “Voz da Bicharada” começou há três anos, com voluntários do Centro de Controle de Zoonoses. Sidinéia Fróes, coordenadora, conta que são feitas, em média, seis adoções por mês, a maioria filhotes. E, para cada dez animais levados pelos tutores, um é devolvido.

Guilherme Gumiero, as duas cadelas adotadas e Dona Neusa (Foto: Acervo Apasfa/São Joaquim)

Para ela, os prejuízos maiores são para os sentimentos dos bichos. “Ele acredita que tem um lar, uma família, que está sendo bem cuidado e, de repente, volta para o abrigo, tendo que disputar espaço e comida, perdendo tudo o que tinha. Passa por um período de muita tristeza e alguns até ficam doentes.”

No projeto, as adoções são feitas com base em alguns critérios. Um deles é observar se as famílias têm condições de acolher os animais. Também é assinado um termo de adoção, para que o adotante saiba o temperamento do cão ou gato que está levando para casa e os cuidados necessários. Tudo muito bem documentado. Mesmo assim, as devoluções acontecem.

Conflitos no condomínio: como resolver?

A percepção recente de entidades que cuidam de animais de rua é o aumento dos casos de abandono, principalmente com a entrega de moradias populares. Famílias estariam sendo impedidas de entrar nas novas casas ou apartamentos com seus animais. Outra situação seria a ida de famílias para condomínios, onde muitas regras são impostas e, em alguns casos, há a proibição da entrada e permanência de pets.

Segundo a advogada Patrícia Hajzock Atta, da OAB de Ribeirão Preto, “a Constituição Federal garante o direito de posse e propriedade de animais de estimação, sendo vedada qualquer cláusula condominial em contrário, devendo, no entanto, os responsáveis buscarem minimizar o incômodo, para uma convivência pacífica e harmoniosa”. Ela lembra que não existe uma norma jurídica que limite o tamanho do animal que vive em apartamento. O que deve ser observado é o bem-estar dele, condições de higiene e eventuais barulhos excessivos que perturbem outros moradores.

Maria Luisa, fundadora da Cão que Mia, em Franca: quase 30 mil animais salvos em 13 anos (Foto: Acervo pessoal)

Nos casos de condomínios já instituídos e que impedem a entrada de animais de novos moradores, ela dá, como opção, acionar a Justiça. “Inúmeros tutores têm buscado, com êxito, o Judiciário, para manter a posse de seus bichinhos e anular multas aplicadas. É crescente o número de pessoas que querem a companhia de animais e desenvolvem com eles laços profundos de amor, fazendo com que lutem pelo direito de mantê-los em sua posse.”

A advogada defende que os conflitos seriam evitados se houvesse respeito de ambas as partes: “O direito ao sossego é do vizinho e também do tutor do animal. Por um lado, o tutor deve observar seu animal para minimizar eventuais incômodos e, por outro, deve o vizinho ponderar se as reclamações são pertinentes ou mera intolerância”. A função do síndico é fundamental para avaliar o que está sendo reclamado e procurar um equilíbrio entre o direito de posse, o bem-estar do animal e o direito de vizinhança.

Para barulhos excessivos, o dono precisa se atentar para as causas da intranquilidade dos pets. Também deve zelar pelas áreas comuns, evitando que sejam sujas pelos bichos ou providenciando a limpeza caso eles façam necessidades fisiológicas nesses espaços. São consideradas áreas comuns as de livre acesso a todos os condôminos, como portarias, elevadores, corredores, garagens e playgrounds.

“As regras devem buscar o bom senso sem exageros. Alguns condomínios exigem o uso de focinheira mesmo em cães dóceis e outros, que os animais sejam carregados no colo. A primeira visa evitar ataques sem observar a docilidade do animal e a outra, que não sujem as áreas comuns sem considerar a impossibilidade de alguns tutores serem idosos, terem problemas de saúde ou não conseguirem suportar o peso do animal.”

Em Pontal, a cada dez animais adotados, um é devolvido (Foto: Acervo/Voz da Bicharada)