Espírito do tempo

Um cantinho solidário

Com dívidas de R$ 20 a R$ 30 mil por mês, entidade pede ajuda para atender pacientes com paralisia cerebral

Igor Savenhago

Foto acima: Maioria dos moradores do lar vive acamada (Ricco Leite)

Lucas, de sete anos, nunca foi pra casa. Morou no hospital até os quatro e, desde então, vive no Cantinho do Céu, entidade de Ribeirão Preto que atende crianças e adultos com paralisia cerebral. O menino não enxerga, tem outros problemas de saúde que o impedem de sair da cama e precisa de cuidados especiais 24 horas por dia.

A realidade não é muito diferente dos outros 59 atendidos pelo lar. Como Wellington, de oito anos. Desde quando chegou ali, há três, não recebe a visita de familiares. Foi deixado à própria sorte. “É o nosso passarinho”. Quem o define assim é Sônia Ponciano, de 62 anos, a fundadora do Cantinho. “Quando ele veio para cá, era bem miudinho. As perninhas eram um ‘risquinho’. Passamos, carinhosamente, a chamá-lo de passarinho”.

“E agora voa?”, pergunto comovido. “Voa, voa muito longe, né filho?”. Essa é outra forma carinhosa com que ela se refere aos moradores da entidade. Todos são filhos e filhas, indistintamente. Trinta e cinco foram, literalmente, adotados por Sônia, que detém a guarda deles. Uma maneira que ela encontrou de dar apoio físico e afetivo a quem perdeu o apoio de pais e mães. “Muitas dessas crianças não têm parentes, ou porque morreram ou porque pararam de visitá-los”.

Carol é uma das exceções. Com 15 anos, ela está no Cantinho do Céu há dois. A mãe, Eliana, que trabalha, por ironia do destino, numa fábrica de brinquedos, vai todos os dias ao lar para vê-la. Fica todo tempo ao lado da cama. Ela conta que cuidava da filha com a ajuda da mãe e, por causa do tratamento intensivo, não podia trabalhar para ajudar no orçamento da casa. Quando a saúde da menina piorou, buscou ajuda. “Como sei que aqui a Carol é muito bem cuidada, fico tranquila. Isso para uma mãe é tudo”.

Sônia sabe bem disso. Principalmente quando decidiu ser mãe de uma menina com paralisia, em 1983. Ela participava de uma comunidade religiosa que fez uma visita a uma família de Franca, a 90 quilômetros de Ribeirão Preto. Quando chegou, conheceu Elaine, que acabara de perder a mãe. O pai não tinha condições de criá-la sozinho.

A criança, então com cinco anos, foi trazida por Sônia a Ribeirão. Começava, naquele ano, uma peregrinação por hospitais e associações de pessoas com deficiência. “Foi quando percebi que existia um monte de gente como a Elaine. Era preciso fazer alguma coisa por elas”. Com a ajuda da mãe e do marido, Sônia alugou uma casa nos Campos Elíseos, onde montou uma creche para crianças com paralisia cerebral.

Como o número de atendidos cresceu rápido, foi necessário outro imóvel. E outro. Até que a prefeitura doou em comodato, por 30 anos – recentemente renovado por mais 30 –, o atual terreno, na Vila Albertina. Numa das paredes do corredor principal, fotos da trajetória de Elaine – que continua morando com Sônia e agora divide a casa com um irmão adotivo, Thiago, também com paralisia cerebral – ilustram uma frase escrita em tinta preta. “Eu sou o motivo do Cantinho do Céu existir”.

Sônia adotou menina com paralisia em 1983, o que motivou abertura da entidade (Foto: Ricco Leite)

Com campanhas beneficentes, bazares, bingos e outros eventos, Sônia conseguiu erguer os primeiros cômodos, estrutura necessária para fazer a mudança para lá, em 1990. Mas a construção não parou. Foi dividida em cinco etapas, até chegar ao que é hoje, com 15 grandes quartos. Há quatro anos, no entanto, uma exigência do Ministério Público fez as obras serem retomadas. A complexidade dos casos atendidos no Cantinho obrigou uma transformação: de lar para hospital de retaguarda. São mais de 70 funcionários, sem contar os voluntários, como os médicos amigos, que, desde o início da entidade, toparam trabalhar de graça.

A mudança para hospital interferiu nas despesas da instituição, que eram de R$ 90 mil mensais e subiram para R$ 180 mil – R$ 100 mil só com a folha de pagamento. Desse total, 30% são de verbas públicas – repasses da prefeitura e doações de pessoas físicas e jurídicas por meio do Imposto de Renda. As outras receitas nunca cobrem o restante. Sempre faltam de R$ 20 mil a R$ 30 mil. “Funciona assim. Vamos juntando as dívidas de três a quatro meses e fazemos um evento para cobrir. Aí, começa de novo. Dívidas e, dentro de três ou quatro meses, novo evento”, conta Sônia.

Mas não reclama. Incansável, corre de um lado para outro. Orienta enfermeiros, auxiliares, assistentes sociais, farmacêuticos, nutricionistas, e visita os quartos um a um, várias vezes ao dia. “Isso é minha vida. Se Deus entendeu que eu podia cuidar de quem precisa, sou grata por isso”. E queria fazer mais. Só não consegue porque o hospital está com as vagas esgotadas. “Pelo menos por enquanto, não temos expectativa para ampliar os atendimentos. Gostaria muito, mas, infelizmente, não há condições”.

Instituição conta com doações e faz campanhas para manter atividade (Foto: Ricco Leite)

Violência doméstica

O hospital recebe, preferencialmente, crianças, que podem morar ali durante toda a vida. Atualmente, os pacientes têm entre quatro e 47 anos. Entre eles, vítimas de violência doméstica. Como o próprio Thiago, um dos dois que moram com Sônia, que sofreu uma tentativa de aborto. Com o amparo que encontrou, se tornou independente. É um dos poucos que andam sozinho. E se envolve na organização dos eventos.

A grande maioria dos internos vive na cama. Muitos precisam de respiração artificial e se alimentam por sonda. Além da comida especial, utilizam sabonete líquido, por causa da pele sensível, e as toalhas são individuais. Um exemplo é Cristina, que está no Cantinho há 26 anos. Ela, que chorava bastante quando bebê, foi asfixiada pela mãe aos dez meses de vida, com pedaços de papel higiênico enfiados na garganta. A falta de oxigenação no cérebro comprometeu todos os movimentos. Na cama, ela praticamente não reage, nem mesmo na presença de visitas.

Para intensificar os tratamentos em casos assim, Sônia pede doações, que podem ser feitas de várias formas. “Os interessados podem se tornar sócios mensais, se oferecer como voluntários ou, ainda, colaborar com recursos financeiros ou materiais”.

Serviço:

Para mais informações, o telefone do Cantinho do Céu é o (16) 3622-0853.