Inovação nos vinhedos
Com clima favorável e técnica de dupla poda, Franca desponta na plantação de uvas para a produção de vinhos finos
Ana Laura Siqueira
Foto acima: Temperaturas altas durante o dia e menores à noite contribuem para a qualidade da bebida (Divulgação)
Embora tivesse viajado a trabalho para Franca-SP, não foi nele que Maurício Orlov, dono de um escritório de representações de calçados, pensou assim que saiu do carro. Com o frio que fazia, só passava pela cabeça dele que daria para fazer um bom vinho na cidade. Após surgir naquele 1º de maio de 1994, a ideia de uma vinícola na capital do calçado apareceu outras vezes. Até que, 26 anos depois, deixou de ser apenas ideia para se tornar o novo empreendimento de Maurício.
O empresário se aventurou em outras áreas profissionais e, apesar da paixão pela ocupação atual, sentiu necessidade de desacelerar o ritmo. Em uma conversa com seu sócio, o contador Fernando Bizanha, desabafou sobre a vontade de estar mais próximo à natureza. Acabou que o desejo de Maurício era também o de Fernando. A dupla decidiu fazer o sonho de 94 acontecer. Mas, como ninguém nunca tinha tentado produzir vinhos na cidade do café, os anos seguintes foram de muita pesquisa.
Seguindo o caminho do conhecimento, os amigos chegaram até o agrônomo, mestre e doutor em viticultura e enologia Murillo de Albuquerque Regina, que também é pesquisador na Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig). Precursor de técnicas inovadoras para o cultivo de uvas, Murilo entregou a eles um relatório de quase 30 anos de levantamentos sobre as condições do solo e clima da região da Alta Mogiana. “Ele deu um ‘ok’ e disse: ‘não tem histórico de produção vinífera na região de Franca. Mas os indicativos são positivos. Tudo leva a crer que vai dar para fazer um belo de um vinho’.”
Com a lição de casa pronta, restava testar. Mais de 1.300 mudas foram plantadas ao fundo da chácara de Fernando, em uma área pequena. A primeira safra, que deveria ser colhida apenas três anos depois, se antecipou e chegou com dois, rendendo mais de 200 garrafas de vinho. Quase que como uma festa de boas-vindas para os cachos de uva, a colheita foi feita pelas próprias famílias dos sócios e durou dois dias.
O “terroir piloto” ficou pequeno para tanta empolgação. Juntos, os empresários trilharam uma via sacra para encontrar a fazenda ideal para a construção de uma vinícola. Foram quase dois anos de busca. “Visitamos entre 60 e 70 propriedades até encontrar o terroir perfeito”, recorda Maurício. Finalmente, eles puderam entrar na terra escolhida. A chácara fica na parte mais alta de Franca. Segundo os donos, tem uma terra mais fraca para cultivo por conta do solo pedregoso e, por lá, chove menos que na área urbana. Mas, para a viticultura, todas essas características sugerem um ótimo cenário.
A peregrinação foi recompensada. Na segunda safra, a produção de garrafas de vinho da vinícola Arcano – como foi batizada – pulou para 550 unidades. A safra do ano passado, a terceira, rendeu 3 mil garrafas, e a expectativa para este ano é que a colheita proporcione de 10 a 15 mil.
São cinco hectares de área plantada na Arcano – o equivalente a 20 mil mudas da variedade francesa syrah. A fazenda já conta, também, com outras espécies de uvas, como a cabernet sauvignon e a cabernet franc e, de acordo com os donos, é provável que, na próxima temporada, elas resultem em vinhos. Uma garrafa do vinho fino tinto de Franca custa, em média, R$ 129. Atualmente, ele é comercializado em restaurantes e empórios da cidade e em Ribeirão Preto-SP, e distribuído em alguns lugares na capital.
Aposta no vinho francano
Para o engenheiro agrônomo e consultor em viticultura e enologia Frederico Novelli, tão claro quanto uma taça de vinho é o potencial da região da Alta Mogiana para a produção da bebida. A aposta do consultor foi alta: ele deixou o estado de Minas Gerais – onde morava – para se abrigar em Franca. “Vim para cá para poder explorar mais essa região. Acredito que em pouco tempo vai ter um boom de novos vinhedos e vinícolas aqui.”
O especialista explica que a amplitude térmica da cidade é responsável pelo sucesso da cultura. “A gente tem temperaturas altas durante o dia que chegam a 25ºC. À noite, elas caem para 15ºC a 10ºC. De dia, a planta produz açúcar e os taninos – compostos naturais que dão estrutura ao vinho. De noite, a planta respira e transpira menos, conservando a acidez que é super importante para a bebida”.
A técnica de cultivo das uvas também tem relação direta com a qualidade dos vinhos. Tradicionalmente, as videiras são podadas uma única vez no ano, geralmente entre agosto e setembro. Nessas condições, a colheita é feita nos primeiros meses do ano. O consultor explica que, na Alta Mogiana, mais especificamente em Franca, o plantio tradicional não funcionaria. Um dos motivos é que, entre janeiro e março, os dias são quentes e acompanhados de chuvas. Caso os cachos amadurecessem nessas condições, acabariam apodrecendo.
Por isso, a técnica de plantação orientada por Frederico e que é aplicada na Arcano é a da “dupla poda”, desenvolvida para vinhos de inverno. Como o nome sugere, no ciclo adaptado, a parreira sofre duas podas em um ano. A primeira acontece em agosto e é mais curta. Nos meses em que os cachos deveriam estar maduros, a plantação é podada outra vez, jogando a colheita para julho.
Todo esse trabalho reverte em vinhos finos de altíssima qualidade, não porque lembram os consagrados franceses, mas porque a localidade dá a eles um sabor especial. “O vinho produzido aqui tem as características de um grande vinho. Tem uma complexidade aromática muito interessante, tem equilíbrio entre o álcool e acidez. Isso não é mérito do produtor, do enólogo ou do consumidor. É mérito da região.”
Orgulho em cultivar
A empresa de consultoria em viticultura e enologia Floeno – em que o especialista Frederico Novelli atua – atende, além de Maurício Orlov, outros dois produtores de uva em Franca. Ele conta que os vinhedos ainda são pequenos e não estão totalmente estabelecidos. O cultivo nessas duas propriedades aconteceu em novembro do ano passado. As primeiras colheitas estão previstas para agosto de 2022.
Tudo aponta para uma produção promissora de vinhos na cidade do café. Mas Frederico alerta para o preconceito que pode aparecer contra as primeiras produções locais. Isso porque o universo dos vinhos é ácido e costuma descreditar bebidas que surgem em regiões sem tradição no ramo.
Contudo, ele acredita que os produtores francanos romperão esses estigmas com facilidade, tendo em vista a confiança com a qual investem e comercializam suas produções. “Os produtores daqui têm muito orgulho de seus produtos e são pessoas que têm uma visão de mercado muito boa.”
Produtor de Ituverava foi pioneiro
O pioneirismo na produção de uvas para vinhos finos na Alta Mogiana se deu com Beto Lorenzato, proprietário da vinícola Marchese di Ivrea, em Ituverava-SP, que foi montada em 2006. O local era um haras, mas, após uma noite de Santo Antônio, Lorenzato observou que o clima era semelhante a da Toscana, na Itália. Decidiu, então, investir no cultivo de variedades da velha Bota.
Naquela noite, a temperatura era de 4ºC e, na manhã seguinte, subiu para 27ºC. Além dessa questão, as terras que vão de Ribeirão a Franca e seguem até Bauru, porção conhecida como cuestas paulistas, está sob rocha basáltica, extremamente fértil, que favorece a concentração de açúcar na uva e obtenção de bebidas com qualidade.
O sucesso da Marchese, que continua cultivando, exclusivamente, uvas italianas, impulsionou outros empresários a investir em vinhedos na região. O próprio Lorenzato, que defende que essas características do clima fazem da região um dos melhores lugares do mundo para a produção de uvas para vinhos finos, anunciou, no final de 2019, que, num prazo de dois anos, investiria numa fábrica de espumantes em parceria com Luiz Biagi, proprietário da Fazenda Cravinhos, em município de mesmo nome, onde alguns hectares de uva já estão em produção de forma experimental.