É proibido morrer
Entre 2017 e 2019, Franca ficou entre as cinco principais cidades paulistas em mortes no trânsito; especialistas discutem soluções
Caíque Araújo
Foto acima: Avenida Dr. Ismael Alonso Y Alonso, uma das mais movimentadas de Franca (Lindomar Cailton/Portal Rio Grande Notícias)
“O trânsito de Franca é um dos piores que já vi. O motorista não sabe o que é seta”, “Já morei em São Paulo, Ribeirão Preto e Franca. Aqui, sem dúvidas, é um dos piores lugares para dirigir. Você vai em outras cidades, coloca o pé na faixa de pedestres e todo mundo para. Em Franca, ninguém respeita”. Esses são depoimentos do motorista Wendel Chagas e do motociclista Henrique Medeia sobre o trânsito francano.
A cidade tem pouco mais de 350 mil habitantes. É conhecida no país inteiro por ser a “capital do calçado e do basquete”. Contudo, tem se destacado no cenário estadual por uma triste marca: o alto índice de mortes nas ruas e avenidas. É isso que você vai conferir nesta reportagem, que dá início a uma série sobre o caos nas vias públicas.
Eurípedes Roberto tem 51 anos. Acorda às 6h todo dia e toma café com pressa, pois precisa sair logo pra rua. Seu trabalho? Enfrentar o trânsito, diariamente, pelo menos até as 22h. Ele é motociclista e recebe doações para a Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de Franca. Após o expediente, faz corridas de mototáxi e, aos finais de semana, aluga um carro para trabalhar como motorista de aplicativo, sem hora pra parar. “Dirijo pelas ruas de Franca faz mais de 30 anos e acredito que a situação tem piorado com o passar dos anos. Uma melhora na sinalização, fluxo aqui ou ali, mas o que impacta mais é a falta de educação, o desrespeito às leis e a imprudência.”
Eurípedes já sofreu dois acidentes: um enquanto fazia entrega de medicamentos e colidiu com um ciclista e outro quando atropelou um cachorro numa rua sem iluminação. “Você percebe que, em horários de pico e em lugares com mais movimento, os motoristas chegam a ser mais cautelosos. Porém, o que percebo é que vias de menor movimento, com asfalto bom e em linha reta, são um prato cheio para pessoas transitarem em alta velocidade.”
Seta? Pare? Dar preferência ao pedestre na faixa? Eurípedes quase não vê este tipo de ação por parte dos motoristas francanos. “Não tem um dia sequer que não me estresso com alguém que passou direto em um pare, virou sem dar seta. Parar na faixa de pedestre? Isso não existe aqui.”
A segunda na média
Segundo levantamento feito pelo Departamento de Engenharia de Transportes da Escola de Engenharia da USP de São Carlos-SP, Franca ficou entre as cinco cidades do estado de São Paulo que mais registraram mortes no trânsito em 2019 para cada 100 mil habitantes, atrás de Guarujá, Araraquara, São José do Rio Preto e São Vicente. Em 2018, esteve entre as quatro primeiras, perdendo para Praia Grande, Santos e Araraquara. E, no ano anterior, entre as três, depois de São José do Rio Preto e Praia Grande.
Fonte: Departamento de Engenharia de Transportes da Escola de Engenharia da USP de São Carlos-SP
Quando é feita a média desses três anos, Franca sobre para a segunda colocação, com 9,24 mortes para cada 100 mil habitantes. São José do Rio Preto vem à frente, com índice de 9,75.
Em números absolutos, as ruas e avenidas francanas registraram 47 óbitos em 2017, 55 em 2018 e 43 em 2019. O aumento de 2017 para 2018 foi de 14,5%. Já de 2018 para 2019, houve redução de 22%. Em 2020, até outubro, foram 35 mortes.
Possíveis causas
Conversamos com especialistas no assunto e autoridades locais para entender quais fatores colocam Franca nessas posições. O tenente Régis Mendes, responsável pelo pelotão local de trânsito da Polícia Militar, afirma que as principais causas de acidentes em todo o estado são a imprudência e o desrespeito de condutores às normas de trânsito.
Ele não acredita que a falta de implementação de um plano de mobilidade urbana ou que sinalizações inadequadas tenham influência significativa. Lembra que, de acordo com um levantamento do Sistema de Informações Gerenciais de Acidentes de Trânsito do Estado de São Paulo (Infosiga SP), 94% dos acidentes com mortes são causados por falha humana, como imprudência, distração e velocidade excessiva. Com base nisso, atribui comportamentos imprudentes à displicência. Portanto, o principal fator seria comportamental.
O tenente informa que a PM faz trabalhos de prevenção e conscientização, como palestras em escolas, instituições, universidades e empresas, ações que também fizeram parte do I Fórum do Trânsito de Franca, em maio de 2019.
Para Régis, se os motoristas tivessem um comportamento dentro das leis, mesmo que a administração pública não seja eficiente, os números de fatalidades cairiam. “Temos vários exemplos de acidentes graves em que as únicas pessoas que sobreviveram eram as que estavam de cinto de segurança, por exemplo. Um caso famoso foi o do cantor Cristiano Araújo, em 2015. Eram quatro ocupantes no carro. O motorista e seu empresário, que estavam de cinto, sobreviveram. O cantor a namorada, que estavam atrás e sem cinto, morreram na hora. Tivemos também um acidente em julho na nossa região, na rodovia Tancredo Neves, quando um Corsa Classic com três homens capotou e a única pessoa que morreu foi o passageiro de trás que estava sem cinto.”
Segundo Fernando Velásquez, urbanista especialista em trânsito, Franca tem muitas falhas de mobilidade urbana e precisa de um plano geral. Ele também vê, porém, que o fator humano é responsável pelo maior número de acidentes, sejam por veículos automotores, a pé ou de bicicleta. E que, mais do que uma questão de educação no trânsito, o desrespeito às leis é cultural.
Velásquez avalia que algumas das principais avenidas de Franca, como a Ismael Alonso y Alonso, a Champagnat e a Hélio Palermo, fazem conexões com ruas secundárias muitos ruins, o que deixa a geometria difícil para conversões. Ele explica que, na busca por minimizar este problema, a prefeitura coloca radares e faixas elevadas (lombadas), mas as pessoas não respeitam. O resultado é que esses recursos acabam contribuindo para o aumento do número de acidentes.
Já sobre o plano de mobilidade urbana, relata que o de Franca não é integrado – não considera a relação entre os diferentes modos de transporte, como ciclovias e estações de ônibus. E que, na esfera pública municipal, existe um setor que trabalha com a análise e gestão do trânsito, mas que é absorvido por outras secretarias. Não há, então, um departamento dedicado exclusivamente à mobilidade urbana, o que implica em falha de gestão, impactando diretamente no diagnóstico e na solução dos problemas apresentados. “Acredito que isso interfere muito, pois, se você tem um setor que fica especializado em uma área, a tendência é que os índices melhorem.”
Ele cita a Transerp (Empresa de Trânsito e Transporte Urbano de Ribeirão Preto-SP) como um exemplo. É uma companhia de capital misto que faz a implantação e manutenção do sistema semafórico, sinalização e pavimentação das ruas da cidade, além da fiscalização e gerenciamento do transporte. A solução, porém, não está apenas em ter uma equipe especializada. Velásquez considera que leis mais rígidas e o aumento de campanhas preventivas contribuiriam para a redução no número de acidentes.
A reportagem tentou contato com a Prefeitura de Franca para que houvesse um posicionamento sobre o assunto. Mas, na época do fechamento desta reportagem, final de dezembro, não houve qualquer retorno.
Melhorias
Coca Ferraz é membro do Núcleo de Estudos de Segurança no Trânsito da Universidade de São Paulo (USP) e ex-secretário de Transporte e Trânsito de São Carlos SP, cidade com a menor média de mortes no trânsito no estado entre 2017 e 2019, com índice de 4,42 para 100 mil habitantes. Ele analisa que os bons resultados vieram com o envolvimento da população, que abraçou a causa do trânsito graças a campanhas nas escolas e sinalização moderna e chamativa, e o apoio das autoridades.
Ferraz entende que essa integração terá impacto no comportamento de condutores e pedestres pelos próximos anos, o que deve resultar em um trânsito mais seguro.