Energia do biogás
Empresas de resíduos se juntam à agropecuária por matriz energética mais limpa e incentivam alternativas sustentáveis e lucrativas
Ana Laura Siqueira
Foto acima: Em Entre Rios do Oeste-PR, produtores estão fazendo dinheiro com dejetos de porcos (Divulgação)
Processos comuns da agricultura e pecuária estão chamando a atenção de empresas que pesquisam e produzem energia renovável. Elas estão interessadas em resíduos que, geralmente, são danosos ao meio ambiente, como as sobras da fabricação do etanol e dejetos de origem animal. O motivo é o alto potencial energético desses subprodutos. A produção de biogás por meio desses rejeitos vem ganhando espaço na discussão sobre geração de energia limpa. Essa iniciativa tem despontado como solução para os conflitos entre o agronegócio e a causa ambiental. Produtores rurais também explicam como é possível fazer renda extra por meio dela.
Recentemente, Guariba-SP passou a comportar a maior usina do mundo a utilizar subprodutos da cana-de-açúcar para fabricar biogás, segundo o Governo Federal. A inauguração da planta, como é chamada a extensão da estrutura de produção do gás, foi em outubro. O empreendimento é da Raízen, uma empresa integrada de energia.
A companhia foi fundada em 2011. Embora já atue no cultivo da cana, produção de açúcar, etanol e bioenergia, identificou no recente projeto mais uma maneira de diversificar seu portfólio. Com o tamanho de quase dois Maracanãs, a planta está estrategicamente localizada ao lado da unidade produtora de Bonfim – que também é da empresa. A usina em questão processa cinco milhões de toneladas de cana-de-açúcar por ano.
Para captar toda essa cana, a organização criou o Programa ELO, que busca produtores canavieiros próximos às usinas. “O programa tem como objetivo promover o desenvolvimento sustentável dos fornecedores. Engajamos esses parceiros na adoção de medidas que incentivam e estimulam o aperfeiçoamento das técnicas de gestão econômica, ambiental e social”, explica Alessandra Feijó, gerente de produção industrial de biogás da Raízen.
O empreendimento, segundo a Raízen, é capaz de produzir energia suficiente para abastecer uma cidade como Araraquara-SP por, pelo menos, um ano. A usina foi autorizada pela Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) e pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) a comercializar seu commodity. Em 2016, a companhia venceu um leilão que definiu que uma parcela da eletricidade deve ser negociada dentro de um contrato. A forma de vender o que sobrar fica a cargo da Raízen.
Subprodutos da cana
Nas usinas, surgem dois subprodutos do processo de fabricação do açúcar e do etanol: a torta de filtro e a vinhaça. Esses resíduos são levados às plantas de produção do biogás e submetidos a uma biodigestão anaeróbica. Isso significa que essa matéria é deixada às bactérias para decompor na ausência de oxigênio. É nessa etapa que o biogás é liberado.
Lytton Medrado, CEO da Bazico Tecnologia e Consultoria, empresa especialista em soluções ambientais e geração de bioenergia, assinala que essa ação é comum no dia a dia. Ele diz que, “na verdade, a biodigestão anaeróbica é a reprodução de um processo que acontece na natureza sem o controle e a interferência humana”. Após ser extraído, o gás é purificado e conduzido para ser queimado em motogeradores e, finalmente, gerar energia elétrica.
Da extração do biogás, mais subprodutos aparecem. “Tanto a vinhaça quanto a torta de filtro biodigeridas são encaminhadas para os canaviais, para serem usadas como biofertilizantes, ricos em potássio, fósforo e nitrogênio”, afirma Alessandra Feijó. Antes da possibilidade de transformar esses resíduos em energia, eles viravam, somente, etanol de segunda geração e pellets de bagaço de cana. A gerente de produção informa que a operação fica cada vez mais sustentável à medida que mais produtos são extraídos de uma mesma matéria-prima.
Entre Rios do Oeste
Em Entre Rios do Oeste-PR, produtores estão fazendo dinheiro com dejetos de porcos. No município, a suinocultura é uma popular atividade econômica e, graças a ela, a cidade entrou no radar de uma importante instituição de ciência e tecnologia (ICT): o Centro Internacional de Energias Renováveis (Cibiogás).
Em 2012, a instituição trabalhou em um levantamento sobre o potencial energético da região oeste do Paraná. O resultado mostrou que, entre as cidades analisadas, Entre Rios possuía a maior concentração de suínos: na época, 150 mil porcos. Um trunfo para a Cibiogás, que buscava maneiras de viabilizar a produção de energia por meio do biogás de dejetos suínos.
Em 2019, a ANEEL fez uma chamada pública para projetos relacionados à produção de energia renovável, e logo o da Cibiogás foi apresentado à prefeitura. A princípio, o ICT estudou formas de integrar todas as 63 propriedades com granjas da cidade. Mas, de acordo com Carlos Eduardo Levandowski, secretário de Saneamento Básico, Energias Renováveis e Iluminação Pública, “conectar todos os suinocultores iria tornar o projeto muito grande e, consequentemente, muito caro”. Por conta disso, apenas 18 produtores foram contemplados pelo programa.
A Companhia Paranaense de Energia (Copel) foi a financiadora da proposta e aplicou R$ 17 mil. Para que a termelétrica pudesse ser construída com segurança, a prefeitura precisou investir R$ 300 mil em um terreno. Aspectos relacionados à operação, como construção da estrutura e dos gasodutos que interligam as propriedades, ficaram com a Cibiogás.
Biogás suíno
Depois que a central termelétrica foi estabelecida, os esforços se concentraram na instalação dos gasodutos que partem de cada propriedade e chegam até ela. Os suinocultores que toparam a proposta precisaram investir em biodigestores, equipamentos usados para processar a matéria orgânica. Isso porque, conforme Lytton, “a segurança do substrato e sua entrega em condições adequadas são fatores determinantes para o uso correto dessa tecnologia”. Com todas as estruturas interligadas, o processo passou a funcionar em cadeia.
Os dejetos suínos são levados ao biodigestor. Quando dentro do equipamento, a matéria orgânica sofre a digestão anaeróbica, como ocorre com os subprodutos do açúcar e do etanol. O gás extraído nas fazendas passa pela tubulação, segue direto para a central termelétrica e se aloja em pulmões – grandes reservatórios onde a substância recebe tratamento. A queima é feita em motores semelhantes aos de caminhões e essa etapa resulta em energia elétrica.
Embora o processo de extração do biogás com auxílio da suinocultura seja um pouco diferente, também gera outros subprodutos. O que não é transformado em gás permanece com o suinocultor, que, geralmente, utiliza esse resíduo como biofertilizante para plantações. “Antes, os dejetos saíam das pocilgas e iam direto para a lavoura. Eles não eram totalmente prejudiciais, mas, com o tempo, poderiam passar a queimar a lavoura”, afirma Claudinei Jardel Stein, suinocultor e presidente da Associação de Produtores de Entre Rios.
O biogás produzido em cada fazenda é comprado pela prefeitura. Cada metro cúbico custa por volta de R$ 0,29. Claudinei produz de dez a 12 mil metros cúbicos de gás. No melhor cenário, recebe R$ 3.480 por mês.
Para gerar essa quantidade de gás, o produtor conta com 7.500 porcos. Mantendo a granja nessas condições, em pouco tempo ele quita os custos do biodigestor. Enquanto isso não acontece, está satisfeito com os benefícios que a iniciativa já tem trazido. “O odor praticamente não existe mais. As moscas que vinham pelos dejetos diminuíram consideravelmente. E estamos dentro das leis ambientais também!”.
A cidade toda ganha
Comprando a energia gerada pelos suinocultores, a prefeitura consegue abastecer 60 prédios públicos. Mas, de acordo com o secretário, a redução dos custos com eletricidade é a menor das vantagens da iniciativa, ficando entre 1 e 1,5% por mês. Para ele, o valor do projeto está dividido entre a geração da economia circular e a preservação ambiental. “Estamos pagando por um recurso que fica na nossa região. Existe a distribuição de renda por meio do pagamento aos produtores que fornecem o biogás, às empresas que fornecem os serviços e às empresas que entregam os materiais para a execução dos serviços.”
Entre Rios tem cerca de 260 mil suínos. Segundo Claudinei, todas as propriedades superaram a média prevista de metros cúbicos que seriam produzidos por cada uma delas. Ele acredita que, em pouco tempo, vai ser necessário ampliar o projeto porque produtores que não conseguiram fazer parte da iniciativa antes estão interessados agora.
Qual o mais limpo?
Embora existam substratos agropecuários mais ou menos agressivos à natureza, Lytton não acha justa a comparação sobre qual biomassa gera a energia mais limpa. “Não podemos afirmar qual utilização é mais ou menos importante. Toda geração de bioenergia é limpa e sustentável. Os benefícios acontecem nas duas pontas do processo: na eliminação de resíduos prejudiciais ao meio ambiente e na transformação de passivos ambientais em meio de obtenção de lucros.”
O especialista também chama a atenção para tantos outros subprodutos que são desperdiçados ou descartados irregularmente. Ainda segundo o CEO da Bazico, o Brasil gera, anualmente, 37 milhões de toneladas de resíduos orgânicos. Essa quantidade representa um potencial de produção de 3,33 bilhões de metros cúbicos de biogás.