Tráfico humano
Formas contemporâneas de exploração do trabalho são tema de livro de promotor de Franca, que concedeu entrevista exclusiva
Suéllen Cristina de Souza
Foto acima: Algumas pessoas são levadas a regiões afastadas, amarradas ou vigiadas o tempo todo (Banco de imagens)
A jovem brasileira Simone Borges Felipe, de 25 anos, deixou o Brasil em 1996 com a esperança de uma vida melhor na Espanha. Natural de Goiás, pretendia trabalhar numa lanchonete e juntar R$ 6 mil para completar o enxoval do casamento. Ficou quatro dias em São Paulo aguardando documentos e fazendo os preparativos para a viagem. Mas acabou caindo nas mãos de quadrilhas especializadas em contrabando de pessoas. Assim que chegou ao país europeu, teve o passaporte confiscado e foi levada a uma boate de Bilbao, onde foi obrigada a se prostituir.
Segundo o pai de Simone, João Borges, a filha mandava uma fotografia toda semana, para dizer que estava tudo bem. Mas, um dia, pediu que a Polícia Federal fosse avisada. Ela e outras mulheres estavam presas, usando drogas e vendendo o corpo para sobreviver. “Aplicaram overdose nela, soltaram na rua… Morreu minha filha.”
Segundo Borges, Simone, que deixou um filho, hoje com 13 anos, foi envenenada, para que não denunciasse um esquema que alimenta o tráfico humano. Morreu no hospital, de pneumonia. Segundo uma amiga, houve, ainda, um agravante. Os médicos teriam sido negligentes, porque Simone era imigrante e vista como prostituta.
Borges explica que, no atestado de óbito, feito na Espanha, constava tuberculose como causa da morte. No Brasil, a família pediu uma necropsia, que apontou hepatite aguda. Para o pai, a prova da intoxicação.
Desde 2011, Simone Borges Felipe dá nome ao Prêmio Abraçando o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que identifica ações de prevenção à violação de Direitos Humanos no que se refere ao tráfico humano, um crime que não é tão fácil de ser caracterizado. Em muitos casos, passa despercebido até por instituições que tentam combatê-lo.
Tipos
O tráfico humano pode ser definido como laboral ou sexual, tendo como principal parâmetro qualquer forma de ausência de liberdade. No primeiro caso, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), as vítimas são submetidas a trabalhos forçados, que se resumem a “privação de liberdade pelos diversos meios, o que inclui a apreensão de documentos, o encaminhamento de trabalhadores a locais geograficamente isolados e a manutenção de guarda armada para evitar fugas.”
A pessoa é colocada num patamar similar a de um escravo. O promotor francano Paulo César Correa Borges, autor do livro “Formas contemporâneas de Trabalho Escravo”, lançado em 2015, afirma que o trabalho forçado pode ser a “violação do princípio da dignidade humana, por meio da exploração de trabalhadores e trabalhadoras, reduzindo as pessoas à condição análoga de escravo, afrontando a dignidade, a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança, além de inúmeros direitos sociais que são protegidos por força da Constituição.”
Já num foco sexual, o tráfico é descrito, segundo pesquisadores do tema, como a exploração de alguém que é vendido a um cliente sem a sua vontade. Este tipo de crime, de acordo com o estudo “Tráfico Sexual: Dentro do negócio da escravidão moderna”, do pesquisador norte-americano Siddharth Kara, é dividido em três etapas: aquisição, movimentação e exploração do sofredor.
Tanto adultos como crianças estão sujeitos. São, geralmente, controlados por cafetões, que, por sua vez, integram quadrilhas. Mas existem os casos de exploração pelos próprios pais ou, ainda, por meio de casamentos forçados ou qualquer situação em que a pessoa se veja obrigada a fazer sexo por sobrevivência.
A legislação e o Protocolo de Palermo
No Brasil, até 2004, a legislação considerava crime de tráfico de pessoas apenas para fins trabalhistas, não considerando as vítimas sexuais. Enquanto isso, alguns países já previam, inclusive, punições para uma terceira via do tráfico humano, a de órgãos. Nesse caso, na ausência de leis específicas, nosso país aplicava outros tipos de normas penais.
Com a adequação do Protocolo de Palermo – instrumento internacional que trata do tráfico de pessoas – e a reorganização dele no Brasil, processo que teve início nos anos 2000, o tráfico sexual foi incluído como crime, independente do consentimento da vítima. Essa temática está prevista no artigo 469 do Código Penal, que passou a definir o tráfico para fins de exploração sexual juntamente ao de trabalhos forçados ou de condições próximas à escravidão, além de inserir a remoção de órgãos como tráfico. Por último, foi adicionada a “retenção indevida de passaporte”, ao artigo 455.
O promotor
Graduado em Direito em 1990, com mestrado em 1998 e Doutorado em 2013, o promotor Paulo César Correa Borges, de Franca, que fez pós-Doutorado na Universidade de Sevilla, na Espanha, tem se dedicado a estudar o tráfico de pessoas. Segundo ele, ainda há muito a ser feito para combater a exploração. Confira os principais trechos da entrevista concedida com exclusividade ao Agenda Sette.
Qual o papel adotado pelo Ministério Público diante do tráfico de pessoas?
O tráfico é um crime instrumental, ou seja, não é um fim em si mesmo, porque ele se destina ou à exploração sexual ou ao trabalho forçado ou a formas de casamento forçado, adoção ilegal, enfim, é um crime instrumental em relação às outras figuras. E pode envolver, inclusive, crianças. Quando falamos em termos jurídicos e de documentos internacionais, criança é o menor de 18 anos, e, nesse grupo, temos a criança menor de 12 anos e o adolescente menor de 18. A competência para as vítimas não classificadas como juvenis é da Vara da Infância e da Juventude, no âmbito da proteção, e ela não acumula a parte criminal, pertencendo à Justiça Estadual. O Ministério Público Estadual, que é onde me situo, tem competência para essas descrições ligadas à Vara da Infância e da Juventude, até o trabalho de exploração da parte infantil. Entretanto, quando já falamos especificamente de tráfico interno, que é dentro do Brasil, ou o transnacional, que é o internacional, a atuação é de jurisdição da Justiça Federal e do Ministério Público Federal. Com relação à atuação do Ministério Público Federal, o que a gente percebe é que, sozinho, o MPF consegue atuar na fase pós-violatória, porque o promotor de Justiça Federal, chamado de Procurador da República, é quem faz essa atuação. Então, quando estamos diante de uma situação criminal, isoladamente a exploração laboral e sexual, estas armações se dão num âmbito federal.
O que representam as fases pré-violatória e pós-violatória para a vítima e quem trabalha em conjunto para o combate do crime?
O MPF, sozinho, já caracteriza como violação de direitos de pessoas a fase pré-violatória. A atuação que se busca é a partir de documentos como o Protocolo de Palermo, que rege essa matéria e várias outras, como os planos nacionais dos direitos humanos, plano 1, plano 2 e plano 3. Agora, quando estamos falando de implantação e proteção dos direitos humanos em populações vulneráveis, a sociedade brasileira tenta fazer este trabalho num campo pré-violatório, já que o pós-violatório seria depois do crime ser cometido. Isso envolve o Ministério Público e o Ministério da Justiça, uma estrutura de centros de proteção que existem nos estados e uma rede em todo o país. E existem ONGs que trabalham com vítimas, que atendem pessoas exploradas sexualmente, existem várias organizações não governamentais que atuam em toda a sociedade. Essa estrutura, apoiando o Estado, tenta cada vez mais estabelecer estratégias de conscientização, para a eliminação da vulnerabilidade, envolvendo políticas públicas e específicas para a população vulnerável.
Por que não existe um órgão público especificamente voltado ao tráfico humano, seja laboral, sexual ou tráfico de órgãos?
Existe, por exemplo, o Conatrae, que cuida do trabalho escravo, que é nacional, e existem os centros estaduais que cuidam dessas pessoas. Além disso, existem núcleos de proteção das pessoas que são vítimas de tráfico. As denúncias, normalmente a essas pessoas, são dadas diretamente e, primeiramente, são levados os relatos de vitimização. Para romper essa cadeia de crimes, é necessário que sejam colocadas em programas de proteção, e existem programas assim nos estados e em âmbito federal. São, normalmente, centros estaduais e, no Brasil, são poucos estados que ainda não possuem esses programas, geralmente estados da região norte. A parte criminal é de responsabilidade do Ministério Público – parte coletiva e no que se refere à proteção judicial.
Qual o perfil das vítimas do tráfico? Há uma incidência maior entre mulheres e crianças?
As mais vulneráveis são mulheres pobres e de regiões periféricas de grandes cidades, que, muitas vezes, até exercem ou se submetem a algum tipo de exploração já pela vulnerabilidade e acabam caindo em redes de tráfico internacional. Quando falamos de exploração sexual, as vítimas em peso são mulheres e meninas, tanto nacionalmente quanto internacionalmente, e há um fluxo também entre os países da América do Sul. Por exemplo, no Brasil, é muito conhecida a rota para Espanha e Portugal, que são portas de entrada da Europa. Mas, curiosamente, na nossa região, é conhecida uma rota e um fluxo muito grande de travestis de Uberlândia para a Itália. Então, existe a demanda por este tipo de exploração e existem aqueles que são os empresários, vendo uma oportunidade de ganhar dinheiro. Essa é a terceira atividade mais rentável do mundo, perdendo somente apara armas e drogas. É um mercado muito lucrativo. E o grande problema é que os fatores que levam à vulnerabilidade social dessas vítimas do tráfico para a exploração do trabalho ou sexual dependem de políticas públicas de inclusão social. E não é somente um público em particular e, sim, pessoas pobres das grandes cidades, de classe baixa. Essas pessoas, às vezes, tentam uma vida melhor e, em busca de oportunidades, acabam caindo na rede de tráfico. Na questão do trabalho forçado, o público maior é masculino, em toda a América Latina. Às vezes, mais de 14h de trabalho, sob vigilância. E, muitas vezes, eles são levados para zonas afastadas, de onde não há como sair, no meio da mata, sem água potável, sem alimentação correta e com necessidades fisiológicas feitas de qualquer maneira. Muitas vezes, ficam com seus documentos retidos com os exploradores, ficando muito tempo sem ver suas famílias. São cobradas despesas, como o próprio instrumental usado para trabalhar, como se fossem despesas que eles fossem obrigados a custear, contraindo uma dívida eterna e não conseguindo se libertar, já que, enquanto não pagarem por isso, não podem ir embora. No caso do trabalho, a agricultura e a construção civil têm uma grande demanda de pessoas presas nesse esquema de tráfico. No Aeroporto de Guarulhos, houve um acordo muito grande do Ministério Público do Trabalho, que foi feito com empreiteiras que estavam na ampliação do aeroporto nas obras da Copa do Mundo, e foi identificado o trabalho escravo neste período. Pensando no Brasil, há estrangeiros trazidos da Bolívia para a indústria têxtil em São Paulo, onde há roupas sendo vendidas a R$ 20,00, R$ 25,00, mas que foram feitas com mão de obra escrava. De qualquer maneira, essa é uma realidade. A indústria têxtil também tem um foco muito voltado para a exploração do trabalho escravo. No Brasil, existem megaeventos para onde são levadas as pessoas que são, muitas vezes, profissionais do sexo, mas são submetidas a formas de trabalho absolutamente desumanas, em turnos ininterruptos, sem poder escolher os parceiros.
Existem situações na região de Franca?
Sim. Num município aqui perto, houve reincidência de um empregador explorando mão de obra na agricultura. Ele foi objeto de autuação e atuação do Ministério Público do Trabalho, da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. Na construção civil, já foram identificados casos em Ribeirão Preto. Um trabalho bacana que tem em nossa cidade, que a maioria das pessoas desconhece, é a iniciativa da juíza do Trabalho, Eliana [Nogueira], que é o Fórum de Erradicação do Trabalho Escravo. Havia uma situação de um número muito alto de carteiras de trabalho solicitadas antes dos 14 anos. E, pelo fórum, essas pessoas foram encaminhados para trabalhos profissionalizantes. Ao invés de ingressarem no mercado de trabalho de maneira precoce, se tornavam aprendizes. Houve um acordo firmado no âmbito do estado de São Paulo, que foi propagado para o Brasil inteiro. Isso tudo fez parte também da minha pesquisa. A iniciativa partiu de Franca, que foi a primeira cidade a implementar este sistema no país.
Quais foram as alterações legislativas realizadas pela Unasul que influenciam na questão do tráfico de pessoas?
A questão em si é muito interessante, porque não temos um trabalho coordenado entre os países latino-americanos com uma efetividade maior no combate do trabalho escravo. O que existe são trocas de informações entre a Polícia Federal e polícias de outros países e Ministérios Públicos, que trabalham em situações bilaterais. O Peru tem tratado com o Brasil, mas há questões difíceis no caso brasileiro, como em 2016, quando houve uma alteração no nosso Código Penal para fazer a adequação ao Protocolo de Palermo, pois a definição legal que tínhamos de tráfico e trabalho escravo não se referia a todos os tipos de crimes. Existe um projeto de lei do Senado, que é o PLS 236, que faz uma atualização do Código Penal inteiro, e, como é um projeto de alteração da maioria dos crimes do Brasil, há uma dificuldade grande de ser aprovado em bloco. Então, começaram a fazer alterações na nossa legislação de forma pontual. Entre elas, a do tráfico, que agora é adequado ao Protocolo de Palermo, incluindo trabalho escravo, tráfico de órgãos e exploração sexual. Antes, era pensada a violação da lei do transplante, que proibia o comércio de órgãos e, associado a isso, o sequestro da pessoa, mas uma norma específica para tratar o tráfico como instrumento para a exploração de órgãos não existia como agora. O que a gente percebe, então, em relação aos países da Unasul, é a falta da parceria completa.
Existe um mau uso da política de proteção à vítima?
Existe, inclusive, a política migratória, para impedir a migração de brasileiros ou brasileiras para outros países, principalmente para a Europa, como Portugal e Espanha, com a deportação de muitas pessoas. Muitas vezes, ocorre de serem identificadas essas pessoas, que seriam as vítimas, no aeroporto, quando chegam e são deportadas para o Brasil. Mas a diferença é o modo como se recebe por esse trabalho sexual. Na Europa, se recebe em euros. E, em Franca, há um caso de um travesti na Itália que está muito bem de vida e trabalha comumente, e as pessoas na nossa cidade não sabem dessa situação. Isto mostra que, na área da exploração sexual, a pretexto de proteger contra a exploração sexual, pode estar ocorrendo o uso distorcido dessa legislação de proteção, mas para impedir a imigração de trabalhadores e trabalhadoras para outros países. Com o mundo globalizado, os trabalhadores vão buscar trabalho para receber em dólar ou em euros e acabam deportados. Essa é uma situação distinta da violação laboral e sexual, e isso precisa ser enfrentado. Existe muito preconceito. Já há tratados estabelecendo, no caso da exploração sexual, que não se pode querer fazer a barganha. A vítima pode colaborar com a investigação, mas não como forma de barganha. Já existiu, baseado em estratégia, o conceito de que a vítima tinha de denunciar alguém no lugar em que ela estivesse para recebesse o programa de proteção. É conhecido o caso da brasileira que fez acordo com a polícia americana para denunciar um governador de Nova Iorque e depois ela voltou para o país. A gente encontra, nas pesquisas, essa situação, que não está bastante clara. Situações em que a pessoa está sendo vítima de coação, violência, ou em que não há essa coação.
Por que o consentimento da vítima não é válido?
Ela está sendo constrangida, sequestrada, com a liberdade privada ou ameaçada, e, nessas situações, é invalidado qualquer consentimento. Isso está na nova lei do Protocolo de Palermo. Agora, quando a vítima já exercia determinada atividade ilícita no nosso país e vai pra outra nação, na nossa legislação anterior também seria crime. No Protocolo de Palermo, isso depende. Por exemplo, uma profissional do sexo que vai pra Europa e que já exercia a atividade em nosso país, e vai pra exercê-la com melhores condições, mas é enganada e tem que trabalhar em condições piores do que trabalhava antes. Essa fraude, pelo Protocolo de Palermo, torna invalido o consentimento, caracterizando o crime. Quando nada disso existe, e esse lugar é dentro do país, é indiferente para o protocolo. A nossa legislação fez essa adequação. Na nossa legislação e no protocolo, está dito que não é válido consentimento de menores de 18 anos que são considerados pelos tratados internacionais como crianças. Ou quando ocorre com abuso de vulnerabilidade.