Trânsito doente
Excesso de velocidade, celular, embriaguez e animais soltos indicam que saúde de ruas e avenidas de Franca não vai bem
Hévertom Talles
Foto acima: Rodovia Cândido Portinari, da qual se pode ver Franca ao fundo: cenário de acidente fatal (Foto: Banco de imagens)
Sofrer um acidente de trânsito e carregar sequelas. Dificilmente, alguém se imagina numa situação assim. Mas ela é mais comum do que se pode pensar. Em Franca, a possibilidade de acontecer é muito alta.
É o que você vai conferir nesta segunda reportagem da série sobre o caos no trânsito francano. Na primeira, o destaque foi o número de mortes nas vias, que coloca a cidade entre as cinco mais perigosas para dirigir no Estado de São Paulo (clique aqui para ler).
Em março de 2020, William Carvalho, de 25 anos, caiu enquanto pilotava sua motocicleta. Desde então, enfrenta diversas limitações. Era noite do dia 11. O vendedor seguia pela avenida Francisco Delfino dos Santos, no Jardim Paulistano II, quando, ao tentar desviar de um carro, bateu num pneu de sinalização usado pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e caiu em um buraco não sinalizado. Teve escoriações pelo corpo e uma fratura exposta na perna direita.
“Até agora, a Sabesp não fez nada. Nem veio aqui para saber se eu estava precisando de um remédio para dor ou para alguma coisa. Eles não dão moral para nada, não”, declarou William, dias após o acidente.
Ele passou por uma cirurgia para colocar sete parafusos na fíbula, o osso fraturado. Após 20 sessões de fisioterapia, teve alta médica em 16 de setembro. Mas não conseguiu recuperar 100% da condição motora. Tem dificuldades para caminhar, não consegue subir escadas sem corrimão e, para sair da piscina, precisa de ajuda porque não dobra totalmente o pé. Exercícios na academia, só com a parte de cima do corpo. Problemas com os quais terá de conviver, provavelmente, pelo resto da vida.
Durante o período em que ficou a maior parte do tempo acamado, por causa da necessidade de ficar com a perna pra cima, precisou de cuidados. A mãe de William, Alzira, de 61 anos, foi fundamental. A dona de casa dava banhos nele, preparava refeições, entre outros tipos de apoio.
Afastado do trabalho, o vendedor pediu auxílio do INSS, mas encontrou dificuldades. O primeiro mês foi pago, mas logo o benefício foi cortado sem justificativa. Por causa da pandemia, a solicitação precisava ser feita todos os meses. Até recebia, mas era prejudicado pela demora na liberação do dinheiro, cujo valor era menor que o salário de antes do acidente. A queda na renda impossibilitou a quitação de dívidas em aberto.
“O acidente poderia ter sido evitado por meio de uma sinalização melhor ou se tivessem tapado o buraco, pois ficou aberto por mais de 15 dias. Foi um descaso total. Cobrar as faturas de água é na hora, mas, para dar um apoio a um habitante que se acidentou em uma obra, por falta de sinalização, nem fazem conta disso.”
A Sabesp foi procurada para comentar o caso. Em nota, enviada por meio da assessoria de imprensa, informou que, quando é acionada em casos de acidentes, uma investigação é realizada e, se for de responsabilidade da empresa, presta toda a orientação e assistência necessárias. Mas, para o caso específico de William, nenhum retorno foi dado.
Questionado se espera alguma reparação, ele afirma que já ingressou com uma ação na Justiça. “Espero ser ressarcido, com certeza. Não pelo fato de ter estragado a moto, mas por conta de ter me machucado”. Ele não pensa mais em pilotar moto. Tem medo de sofrer outro acidente e a situação piorar.
“Só tenho que agradecer a Deus mesmo, por não ter nada pior, e pedir para que, ao menos, os responsáveis liguem para os acidentados para saber como estão. Antes ter quebrado o pé e algumas limitações do que ficar vegetando em uma cama ou até mesmo ter morrido.”
William conta, agora, com o apoio do pai para levá-lo ao trabalho e buscá-lo no fim do expediente. Espera conseguir se organizar financeiramente para comprar um carro em breve.
Infrações
Levantamento feito pelo Tenente Régis Mendes, do Pelotão de Trânsito de Franca, com base em registros de ocorrências de trânsito no município, aponta que excesso de velocidade, desrespeito à parada obrigatória, uso de celular ao dirigir, embriaguez e falta do cinto de segurança estão entre as principais infrações.
Estes fatores vão ao encontro de um estudo do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV), órgão reconhecido pelo Ministério da Justiça como organização da sociedade civil de interesse público e que promove pesquisas e campanhas de conscientização relacionadas ao trânsito. Em estudo publicado em 29 de setembro de 2020, as causas citadas pelo policial aparecem também entre as principais em âmbito nacional. O estudo se baseou em ocorrências nas vias brasileiras e elencou as causas.
Frota
Cerca de 270 mil veículos circulam na malha viária de Franca. Tenente Régis acredita que a cidade não suporta esse número. Ele defende que medidas bruscas sejam tomadas para que os acidentes diminuam. E ainda faz um alerta, lembrando que o trânsito é resultado das ações de todos, inclusive dos pedestres. “Precisamos respeitar as regras de trânsito, prestar muita atenção quando estivermos conduzindo um veículo e sermos mais gentis uns com os outros.”
Na visão dele, as ocorrências que terminam em mortes estão diretamente relacionadas à alta velocidade. Cerca de 1/3 das multas aplicadas em alguns meses do ano passado estava ligado a isso. “O número de multas, em comparação à frota, até que é baixo. Mas as pessoas precisam respeitar as normas de trânsito, pensando sempre na letalidade. Um acidente pode acontecer e pode ser fatal. Pensando assim, elas refletirão e cumprirão mais as normas.”
Animais soltos
Em 2019, o pedreiro Osmar da Silva Matheus, de 44 anos, entrou para as estatísticas de pessoas que perderam a vida no trânsito francano. Ele seguia pela Rodovia Cândido Portinari, no perímetro urbano, quando, nas proximidades do viaduto do bairro Vila São Sebastião, foi surpreendido por um cavalo. O impacto foi grande e ele não resistiu aos ferimentos, morrendo no local do acidente.
Osmar era casado há 20 anos e pai de três filhos, um de 10 anos, outro de 14 e a primogênita Leticia Silva, de 19 anos. Frequentava a igreja e gostava de ir à praia. No momento da colisão, estava indo buscar a filha mais velha no trabalho, que fica na região central. Como sempre fazia, seguia pela rodovia, por conta do fácil acesso e do tempo menor de trajeto.
A esposa de Osmar, Lucineia, soube da tragédia pelo Facebook. “Fazia mais ou menos uns vinte minutos que ele tinha saído de casa e a gente foi informada em tempo real, porque uma emissora daqui de Franca colocou no Facebook sobre a morte dele, os dados, foto dele na rodovia”, afirma ela, acrescentando que foi uma experiência muito triste, inesperada e dolorosa. “Ele era uma pessoa muito amada e que faz muita falta. Então, às vezes, a imprudência separa a vida das pessoas por irresponsabilidade. Ele não merecia.”
O acidente aconteceu em 6 de maio. Hoje, quase dois anos após o episódio, a família ainda trata as feridas. “A gente era uma família muito unida, fazia tudo juntos. Ele faz falta no dia a dia da gente, na educação das crianças, na conversa de pai pra filhos.”
O dono do cavalo não foi localizado. A concessionária Arteris-Via Paulista, que administra o trecho, foi questionada sobre o que tem feito para que situações como a que envolveu Osmar não aconteçam novamente, e para que animais não tenham acesso à rodovia. Em nota, a empresa respondeu que, onde tem concessões de rodovias, promove programas de prevenção de acidentes e dispõe de recursos operacionais para monitorar animais, como câmeras de monitoramento, inspeção de tráfego 24h por dia e a manutenção de cercas às margens das rodovias, com sinalização viária indicativa. Finalizou informando que a responsabilidade pelos animais é dos proprietários deles.
A esposa de Osmar discorda dessa posição. Para Lucineia, o acidente poderia ter sido evitado. Segundo ela, algumas pessoas que trabalham perto do local do fato comunicaram que o cavalo teve tempo para chegar à rodovia e transitar até o meio da pista, onde têm uma mureta que separa os sentidos sul e norte. E que, por isso, seria possível tomar medidas necessárias para evitar a fatalidade. Ela também acha que poderia haver uma fiscalização melhor nestes lugares, já que a empresa funciona graças ao dinheiro do pedágio, pago pelos contribuintes, e, em contrapartida, deve proporcionar segurança, mesmo que os animais estejam sob tutela de seus donos.
“É lógico que existem pessoas irresponsáveis que deixam os cavalos soltos nas ruas, nas rodovias, mas a concessionária é muito responsável por tudo o que aconteceu. Para você ter uma noção, nunca ninguém veio me procurar para falar que achou o dono do cavalo ou que, pelo menos, procurou.”
Leticia, a filha mais velha, diz que a falta do pai é algo indescritível. Em casa, o sentimento é de vazio nas mesas do jantar ou nas conversas de família, em que o pai contava como foi o dia. “É uma ausência que dói. Parece que uma parte de mim morreu com ele. Mas o levo junto comigo todos os dias no coração. O que nos conforta é saber que ele está juntinho de Deus, e fez o melhor por todos nós enquanto esteve aqui. Ele foi e sempre será o homem que eu tenho muito orgulho.”
Comportamento precisa mudar
Segundo um levantamento divulgado em 2019 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), a cada hora, cinco pessoas morrem em acidentes de trânsito no Brasil. E que mais de 1,6 milhão de pessoas ficaram feridas nos últimos dez anos, representando um custo de R$ 3 bilhões ao Sistema Único de Saúde (SUS) – média de R$ 300 milhões por ano.
Fazendo um recorte e voltando à realidade francana, o Tenente Régis analisa o comportamento da população e aponta o que pode ser feito pelas autoridades e pelos próprios cidadãos para que o trânsito seja menos violento.
Segundo ele, a Polícia Militar faz um trabalho de fiscalização, em especial com relação às infrações que têm relação com acidentes, como uso do celular, dirigir embriagado, desobedecer a sinais de parada obrigatória, pneus em mau estado de conservação, excesso de velocidade, entre outras. A PM também atua preventivamente, por meio das redes sociais do batalhão, fixação de cartazes e distribuição de panfletos em estabelecimentos comerciais.
“A população é a principal personagem. Precisamos nos tornar condutores mais conscientes. Na esmagadora maioria dos acidentes, existe uma ou mais infrações de trânsito cometida por alguma das partes envolvidas.”
Já o advogado especialista em trânsito Mário Bassi acredita que a realidade do trânsito de Franca pode estar ligada diretamente a três situações: educação e formação de motoristas, falta de fiscalização, tanto de radares quanto pelo policiamento, e a má sinalização das vias. “Para piorar, recentemente, o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, alterou e aumentou o limite da pontuação na Carteira Nacional de Habilitação. Isso atinge diretamente o psicológico de condutores que cometem ilegalidade no trânsito, pois causa sensação de impunidade.”
Sobre as leis de trânsito, o especialista afirma que a reincidência nas infrações se dá pelas punições brandas aos motoristas. Para ele, as penalizações previstas pelo Código de Trânsito não intimidam os acusados de transgredir as normas. “A política de educação no trânsito deve ser intensificada em todo o país para pedestres, ciclistas, motociclistas e motoristas em geral. Também as leis devem ser mais rígidas. Só assim poderemos diminuir a violência nas ruas.”