Cultura alternativa

Com sabor da terra

Usando produtos agrícolas inusitados, cervejarias artesanais ganham a aprovação do público e valorizam cultura de suas localidades

Ana Laura Siqueira

Foto acima: Feitoria da Cerveja, em Franca: bebida com café seria esporádica, mas fez sucesso e deve entrar para a linha de produção (Divulgação) 

Da lavoura para o copo. É assim que o mercado de produção de cervejas artesanais do estado de São Paulo tem inovado as receitas da bebida. Empreendedores e mestres cervejeiros contam como a ideia de combinar produtos agrícolas regionais, como frutas, rapadura, mandioca, café, entre outros, acabou rendendo conversa para além dos balcões dos bares. Segundo os especialistas, essa é uma tendência a ser seguida pelo setor.

O empreendedor e cervejeiro Fábio Pini decidiu unir o café forte de todos os dias à cervejinha do final de semana. Seu empreendimento, a Feitoria da Cerveja, fica em Franca-SP, principal cidade da Alta Mogiana – região formada por 15 municípios, nacionalmente conhecida pela produção de cafés de alta qualidade. Embora muitas mercadorias da feira, como coentro, hortelã, laranja e limão, tenham incorporado bebidas pensadas por Fábio, nenhuma delas apresenta tanta regionalidade quanto a que é feita com café, a Coffee Ale. “Estamos cercados de produtores com excelentes cafés. Antes de colocar na cerveja, experimentei muitos, porque também sou um amante de café.”

A maior preocupação dele em relação a adição do café à cerveja é preservar as características do grão descritas pelo produtor rural. Somente vão para a receita grãos de torra clara ou ainda cerejas – que maduraram naturalmente. Isso evita que a cerveja seja escura e acentua o sabor do produto regional. Tem outra razão para que o café usado não seja torrado. É que, depois de tanto testar, Fábio percebeu que o gosto da torra do grão poderia ser confundido com o da torra do malte que, necessariamente, entra na bebida.

O café da Coffee Ale cresce na Fazenda Bela Época, em Ribeirão Corrente-SP, cidade vizinha a Franca. Gabriel Junqueira, gestor comercial da propriedade, entrega de dois a cinco quilos por mês à cervejaria de Fábio. Na fazenda, a cultura do café é quase centenária e o interesse em juntar as mercadorias foi inédito para ele. “Foi uma surpresa. Não esperava que pudesse ter esse fim para o café. Mas foi uma surpresa muito boa. Não tinha imaginado essa combinação. Nunca tinha provado cerveja com café.”

Feitoria da Cerveja já fez bebidas de coentro e hortelã, mas café se destacou (Foto: Divulgação)

Damasco

Misturas inusitadas também rolam na capital do estado. E se expandem pelo país. A Molinarius, por exemplo, nasceu em São Paulo, mas é uma cervejaria “cigana”, como classifica seu criador, o cervejeiro Sérgio Müller, em razão de não possuir uma fábrica. O empreendimento cria receitas de cervejas artesanais que são reproduzidas por estabelecimentos no Brasil todo.

Em 2018, a empresa lançou a Jams, feita com damascos in natura. Edição limitada, especial para as festas de Natal e Ano Novo. “Na produção dela, o damasco traz aroma e sabor de pêssego. E o pêssego é uma fruta muito consumida nas festividades de final de ano, no Brasil”, explica Sérgio.

A criação da Jams demandou uma pesquisa sobre produtores especializados em damasco. O fornecedor ideal para o projeto foi encontrado ainda em São Paulo. Segundo o cervejeiro, o motivo da escolha é que, “quanto mais regional for o produto, maior é o frescor, a ligação cultural com o local onde está sendo produzida a cerveja. Isso é muito importante na produção da bebida, não somente como experiência sensorial, mas como também uma ligação cultural”.

Para ser incorporado à cerveja, o damasco foi reduzido a um purê, adicionado à mistura antes da fermentação, mas só depois que grande parte dos demais ingredientes já tinha sido fervida – quase no final da fabricação. Quando entra na composição, a fruta também ferve. Uma das razões para isso é que as altas temperaturas eliminam qualquer micro-organismo do damasco capaz de contaminar a receita.

Jams Damasco foi criada em 2018 por Sérgio Müller para festas de final de ano (Foto: Divulgação)

Adesão aos produtos

No ano de lançamento, um lote de mil litros da bebida foi fabricado. Segundo o mestre cervejeiro, não sobrou nenhuma gota. “Teve excelente aceitação. Até hoje, tem pessoas que comentam daquela cerveja e nos perguntam se teremos uma nova edição da Jams Damasco”. Como a fabricação foi limitada, não é possível comprar uma Jams, mas Sérgio afirma que já planeja novidades envolvendo outros produtos agrícolas.

Já a estreia da Coffe Ale foi despretensiosa. O projeto feito pela Feitoria da Cerveja para a bebida considerava que o produto seria sazonal. No entanto, a resposta dos clientes à mercadoria contrariou a previsão. “Essa cerveja de café foi um sucesso. Iríamos fazer vez ou outra, mas o pessoal gostou tanto! Quando falta, estão sempre pedindo. Estamos pensando seriamente em deixar essa cerveja como uma bebida de linha”, afirma Fábio, sobre a adesão do público. O empreendedor informa que está em contato com uma cervejaria de Ribeirão Preto-SP que se interessou em comercializar o produto francano.

Quem também apreciou o resultado foi o gestor da Bela Época. “Já experimentei e recomendo. Foi, sem dúvida, uma das melhores cervejas que já tomei. Ela conseguiu transmitir todas as notas que o café tem. Ficou sensacional”, explica Gabriel.

Fazenda Bela Época, onde é produzido o café para a produção da Coffee Ale (Foto: Divulgação)

Tendência

Os cervejeiros concordam que o uso de produtos agrícolas incomuns na produção de cervejas artesanais é uma tendência no setor. “Muitas cervejarias utilizam esses ingredientes na composição de suas cervejas”, afirma Fábio. Ele lembra da Colorado, em Ribeirão Preto-SP, que teve projeção internacional incrementando mandioca e rapadura em suas cervejas, e da Amazon Beer, uma cervejaria no Belém do Pará-PA, que já adicionou açaí e cupuaçu em suas bebidas, dois produtos regionais.

Sérgio completa assinalando que é mais comum que frutas regionais cheguem primeiro às receitas das cervejarias. Mas ele acredita que é questão de tempo para que a regionalidade de variados produtos seja explorada mais a fundo pelo mercado das bebidas artesanais. O criador de Molinarius entende que isso pode potencializar o consumo neste segmento, que, conforme a Associação Brasileira das Cervejas Artesanais (Abracerva), representa 0,7% das vendas de cerveja no país.

Cervejas artesanais: 0,7% do total das vendas de cervejas no país (Foto: Divulgação)