Espírito do tempo

Não é frescura!

Doença pouco conhecida e discutida, a misofonia compromete o convívio social e confunde até os médicos na hora do diagnóstico

Gabriela Buranelli

Foto acima: Doença torna a pessoa intolerante a sons do cotidiano (Banco de imagens)

“Minha filha sofria disso. Mas achávamos que era capricho, frescura da parte dela. Começou com ela não aguentando ouvir a irmã chorar, depois passou a ser com o ronco do pai e depois com o barulho que a outra irmã fazia ao comer. Minha filha começou a entrar em depressão. Saiu do trabalho, trancou a faculdade. Foi em um psicólogo, porém ele disse que era uma maneira dela conseguir atenção da família e amigos. Mas não era isso. A situação ficou insustentável. Ela só chorava e pedia perdão por ser daquele jeito. Mas dizíamos que era drama. Até que minha filha tirou a própria vida. Ela escreveu uma carta de despedida, onde dizia que tinha uma doença, que nunca quis chamar atenção, que jamais escolheria sofrer o que sofria. Que chorava por não conseguir fazer as refeições com a família, por não conseguir cuidar da irmã quando ela chorava, por não conseguir ter um momento em paz com a gente, porque fazíamos diversos barulhos que faziam ela ter reações indesejadas. Ela pediu perdão. Perdão por ser daquele jeito e por não conseguir controlar o que sentia ao ouvir determinado barulho. E disse que, daquele momento em diante, a vida de todos seria melhor. Eu tive culpa da morte da minha filha. Eu não a entendi. Não quis entender, não quis me informar. Deixei ela sofrer sozinha, enquanto essa doença a tomava por dentro. A misofonia acabou com a minha filha”.

O relato é de uma mãe que não quer ter a identidade revelada. Expõe o drama vivido com a filha que tinha misofonia, uma doença que altera a sensibilidade para sons e afeta a vida em sociedade.

Mascar chiclete, talher batendo no prato, embalagem sendo amassada, torneira pingando, limpar os dentes com a língua, estalar dedos, sons nasais, abrir e fechar a caneta, sapato batendo no chão, mastigar. Provavelmente, o misofônico que começou a ler esse texto pulou as primeiras três linhas ou, então, à medida que leu, sentiu raiva ou angústia e lembrou o que isso significa. A lista de barulhos é extensa e as reações são as mais diversas.

A palavra misofonia deriva do grego e significa aversão ao som (Miso: aversão extrema/ódio; Fonia: som). É conhecida também por Síndrome de Sensibilidade Seletiva do Som ou 4S. As pessoas que têm a doença apresentam sintomas específicos quando submetidos a barulhos do cotidiano, como ansiedade, nervosismo, irritabilidade, raiva, ódio, isolamento, entre outros.

Essas reações, geralmente, são incontroláveis e irracionais. No cérebro de um misofônico, é como se houvesse um amplificador. Os barulhos são interpretados muito mais altos do que realmente são. No entanto, atenção: não gostar de determinado som não significa que é misofonia. O que caracteriza a doença são as reações que aparecem.

Os primeiros estudos começaram na década de 1990, nos Estados Unidos, com os cientistas Margareth e Pawel. Hoje, tanto no Brasil como no exterior, existem poucas informações e muitos nem mesmo sabem que existe a misofonia. Por esse motivo, um dos entraves com que os misofônicos lidam é o fato de que as pessoas que não sofrem disso e não conhecem a respeito acreditam que não se trata de uma doença, mas de uma frescura ou implicância.

Ilustração mostra drama de misofônicos com sons do cotidiano (Banco de imagens)

No Brasil, uma das precursoras no estudo é a Tanit Ganz Shanche, pesquisadora e professora da Universidade de São Paulo (USP). Ela iniciou uma pesquisa com um caso peculiar: uma família que tem 12 membros com misofonia. De acordo Tanit, que é otorrinolaringologista, a misofonia é considerada uma doença psiquiátrica e as pessoas que sofrem do transtorno podem reagir com muita raiva quando submetidas a esses sons, podendo até mesmo agredir. Segundo ela, os misofônicos têm a audição em ótimo estado. O problema é a forma com o som é captado pelo cérebro. Em média, 10% das pessoas sofrem de misofonia.

A doença não tem cura. Apenas tratamentos podem amenizá-la. Para isso, existem terapias especificas, como a Cognitiva-Condicional ou a de Retreinamento de Tinnitus. Outra alternativa muito utilizada pelos misofônicos é o uso de tampões nos ouvidos. Mas o uso constante e por muito tempo pode desencadear uma otite.

A misofonia é classificada em 11 níveis. Quanto maior o nível, menor a tolerância a barulhos. Por ser pouco conhecida, a doença acaba confundindo até mesmo os médicos. Muitos dão o diagnóstico de bipolaridade, depressão e ansiedade, transtornos com características diferentes da misofonia, mas que podem ser decorrentes dela.

Outros relatos

Os misofônicos costumam ter seu convívio social afetado, já que não conseguem ficar perto de quem produz certos barulhos, como mastigar e beber. Refeições em família e confraternizações podem se tornar pesadelos.

Segundo Mariana Doretto, de 27 anos, que convive com a doença desde muito nova, a única que a apoia é a mãe. “Outros acabam vendo como frescura, síndrome do pânico, depressão e doenças relacionadas”. Ela conta que descobriu a misofonia por meio de pesquisas na internet. E que é cada vez mais difícil lidar com ela.

“Não consigo mais ter uma vida normal. Cada vez mais, vão surgindo barulhos, que chamamos de gatilhos, que me atormentam e me impedem de viver uma vida normal. Quase não saio mais com os amigos, evito estar reunida com meus familiares, principalmente quando o programa envolve refeições. Isso me afeta totalmente no trabalho, nos estudos e em tudo. Minha única saída, geralmente, são protetores auriculares e fones no ouvido. A misofonia, juntamente com o estresse, tem me roubado completamente as energias e estou sempre esgotada, física e emocionalmente. E agora percebi que tenho me tornado uma péssima companhia. As pessoas não gostam mais de estar tanto ao meu lado. Tenho tentado lutar contra isso, mas, a cada dia que passa, vejo o quanto mudei e o quanto me tornei uma pessoa de difícil convivência. A gente acaba se sentindo um peso para os outros.”

É o caso também de Sophia Bazzo, de dez anos. A mãe, Graziella, diz que descobriu que sua filha tinha misofonia quando viu uma reportagem na televisão. “Não me lembro bem, mas acho que foi no Fantástico [programa da TV Globo]. Passei a pesquisar e percebi que ainda era algo recente com poucos estudos no exterior, nada que tivesse alcance possível para nós.”

Barulhos como mastigar podem provocar reações diversas no misofônico (Foto: Banco de imagens)

Graziella conta que a lista de gatilhos é enorme e que tenta ajudar como consegue. “Talheres, gente comendo, clique do controle remoto, teclado de computador, clique do mouse, pacote de salgadinhos, o irmãozinho brincando de carrinho… A única saída para amenizar até hoje é tampão associado a fone de ouvido com som. Só no último ano, foram 20 fones.”

Denise Carneiro, que também sofre com a misofonia, percebeu que existiam poucas informações a respeito e a maioria que encontrava era em inglês. Por isso, ela resolveu criar o “Diário de um Misofônico”. “O intuito do blog é informar e também desabafar sobre as coisas que acontecem com a gente”. No blog, é possível encontrar, além dos desabafos de Denise, relatos de pessoas que têm o transtorno, como o que abre esta reportagem.

 Denise conta que o blog a ajudou muito, principalmente quando começou a receber as histórias de quem também sofre com o problema. “Muitas vezes, choro enquanto escrevo meus próprios relatos, mas alguns também me tocam bastante, como esse da mãe que perdeu a filha por causa da doença. Recebo vários relatos de pessoas que tentam suicídio, que cortam relações com os familiares e se isolam do mundo. É impossível não chorar com esses.”

O blog pode ser acessado pelo endereço: https://diariodeummisofonico.wordpress.com/.